Captulo 01 Desde 1971, Francisco Brennand vive isolado numa olaria herdada de seu pai. A nica testemunha de sua jornada solitria o dirio que comeou a escrever aos 22 anos. Quando propus a Francisco que me deixasse document-lo, ele me disse que tinha pouco a falar. Foi at sua escrivaninha, destrancou a ltima gaveta e me entregou o seu dirio. FRANCISCO BRENNAND A Geografia Prefigura a Histria, Euclides da Cunha Recife amanheceu sem sol naquela manh quente de dezembro. Na hora marcada, Francisco estava a postos no Marco Zero da cidade para a inaugurao do seu Parque de Esculturas. O lugar estava vazio. No havia conhecidos, nem autoridades locais. Ele tirou um pequeno caderno do bolso e se dirigiu beira do mar. Ao som das ondas arrebentando sobre as pedras, Francisco pronunciou o seu Sermo aos Peixes. Ainda molhado da gua do mar, Francisco entrou no primeiro txi que avistou. Seu destino, o bairro da Vrzea do Capibaribe. Uma longa estrada de terra batida separava a cidade do Recife do esconderijo do artista. "Parece o Egito!", exclamou o taxista. Francisco recebeu o comentrio como um elogio. No tinha pirmides nem esfinges, mas a antiga fbrica de cermicas do seu pai havia se transformado numa civilizao perdida. Tocado pelas palavras do homem, Francisco confessou que seu nico desejo era ser cremado, e que suas cinzas retornassem, dentro de um ovo de cermica, para o nico lugar onde valia a pena viver. O seu Templo, a sua Cidadela, a Oficina Brennand. Eu passei quinze anos trabalhando aqui e no tinha janela nenhuma, eu trabalhava sempre com luz artificial. Repentinamente, quando eu fiz uma reforma em 87, resolvi fazer essa janela. Essa janela me ligou com o mundo e, sobretudo, me ligou agora com o jardim, que um jardim de Roberto Burle Marx. E, alm de tudo, ela me pe em contato com a presena humana, porque atravs dessa janela eu vejo os inmeros turistas e curiosos que passam por a. E que, sem saberem, passam a ser observados por mim. Como pode acontecer tambm o contrrio. A esta hora, se algum turista estivesse aqui do lado de fora, ns estaramos sendo vistos aqui. Ns estaramos vendo reciprocamente uns aos outros. Mas essa janela espelhada. E, sendo espelhada, quem olha aqui v a si prprio. E o que acontece? A maior parte das mulheres passa a e fica se ajeitando, e eu fico olhando. uma janela absolutamente indiscreta... Se ajeitam etc. Depois passam, s vezes olham... Quando se trata de colegiais, eles olham tambm o espelho. No h nada mais sedutor do que um espelho. Mas acontece que a curiosidade da criana maior ainda, e elas se aproximam da janela. Aproximando-se da janela, muito prximas dela, j com o nariz esmagado contra a vidraa, conseguem olhar aqui dentro. Ento uma festa geral quando me descobrem aqui dentro. E eu posso ser muito receptivo a isso mesmo trabalhando, e posso no ser. s vezes eu, sem dizer nada, me retiro e desapareo. Mas eles ficam grudados a... dando adeus, tchau etc. Quer dizer, essa uma janela que no deixa de ser necessria sobretudo por conta da luz. Captulo 02 Na primeira noite do ano, Francisco sonhou que seu obiturio fora publicado no canto esquerdo da pgina 7 do Jornal do Comrcio. Sem foto ou letras em negrito. Poucas palavras digitadas com preguia e deboche. "Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand, nascido em 11 de junho de 1927, foi um ceramista pernambucano que viveu mais de quarenta anos isolado em sua Babilnia de barro. O artista ganhou fama nacional ao criar uma enorme escultura flica no Marco Zero do Recife, carinhosamente apelidada de 'Minhoco de Brennand'. Francisco morreu na manh de ontem, vtima da enchente do Rio Capibaribe que deixou sua oficina submersa." Francisco abriu os olhos. Demorou alguns segundos at entender que tudo no passou de um pesadelo. Achou graa da fama de pornogrfico. Mas no podia aceitar o pouco caso com sua Oficina e a ausncia de qualquer meno sobre seus quadros. Semidesperto, desceu at o ateli e telefonou para Deborah. Suplicou que a ex-mulher publicasse seu dirio depois que ele morresse. S assim o mundo poderia finalmente conhecer a sua paixo maior pela pintura. Para acalm-lo, Deborah recitou o poema que havia escrito naquela manh. Os treze versos de Deborah diziam mais sobre a solido do que as mais de mil pginas do seu dirio, que bradavam contra o esquecimento. Uma carta escrita na casa-grande do Engenho So Joo da Vrzea, no dia 21 de dezembro de 1978, dirigida a mim. Francisco, Voc, o arquelogo que desenterrou peas de milenares feitios, e deu s mesmas o seu carter pessoal, no poderoso cadinho do seu crebro criador, teve a inspirao de conservar, ora escondido, ora bem visvel, o erotismo, que no morre enquanto existir o homem sobre a terra. Voc, que transformou num templo de arte plstica essas velhas e desmanteladas runas de uma antiga olaria, hoje, um verdadeiro e inigualvel museu. Agora, em Camocim de So Flix, esse pequeno paraso, de belssima paisagem, onde impera o silncio, to propcio para a criatividade, volta voc a pintar. E que pintura! A meu ver, a melhor que tem sado da sua palheta. Pintura cheia de fora, de maravilhoso colorido. No sendo eu um expert, tenho a sensibilidade para sentir o que verdadeiramente belo. Estou certo - no sou um vidente, mas acredito no seu grande sucesso como pintor: quem sabe! Talvez um dos maiores do Brasil. Agradeo o seu valioso presente, ir encher de msicas divinas esse silencioso e vazio casaro. Um beijo, muita paz, Papai. Ele era um visitante no digo cotidiano, mas a nica pessoa da famlia que me visitava. Meu irmo, s vezes, aparecia quando solicitado. Quando eu encrencava em matria de fornos sobre os quais eu desconhecia os detalhes tcnicos. Meu pai, porm, vinha por curiosidade, talvez mesmo por paixo pela arte, para tentar descobrir mais alguma coisa do que ele j sabia profundamente a respeito da cermica. Ele teve uma influncia decisiva na minha formao. Capitulo 03 Num domingo de janeiro, dia em que a Oficina parece um deserto, Francisco anda sem pressa pelas alamedas do Templo ao Ovo. Espera o forno esfriar para verificar o nascimento de mais um abutre. Desconfiado de sua prpria obsesso, Francisco tomado por pensamentos estranhos. Com tantos bichos, parece que voc quer transformar sua Oficina em uma arca de No. Esses seres tm poderes, so perigosos e um dia vo fazer suas cobranas. Mais um abutre est prestes a nascer. Nem mesmo os pensamentos nocivos de Francisco seriam capazes de destruir seu fascnio. A escultura entrou medocre no forno e depois de sucessivas queimas sair com 10 mil anos. - Beleza, n? - E tem o timbre metlico. - Voc bate e tem a pancada de um sino. - Primeiro, s vezes, pode sair uma pea perfeitssima, mas se no tiver esse timbre uma pea condenada. Certamente, os seus dias de vida so curtos, sero curtos. Isso, eu chamo de Prometeu. E no por acaso que o nome Prometeu. Basicamente, dentro do esprito grego, ele roubou o fogo. Pela primeira vez o homem passou a ser um demiurgo, quer dizer, com a possibilidade quase que de um ser divino, no momento em que ele era capaz de criar e, atravs do fogo, consolidar essa criao. Mas a ideia do pssaro eu fiz mais como um elemento totmico. No estava me preocupando absolutamente que ele alasse voo. Ele era um vigia. Teria de vigiar o Ovo, o Templo do Ovo. E tinha esse ar hiertico, no propriamente furioso, mas, pela sua imponncia, pela sua altura etc., e pelo nmero deles que rodeia toda a Praa do Templo, eles passaram a ser vigilantes, so guardas. Tudo isso se uniu num conjunto literrio que teria redundado em nada, absolutamente nada, se eu no tivesse conseguido corporificar essa ideia atravs de um desenho que chegou a esse abutre, a essa figura que cada vez mais se aperfeioa, de pea em pea. Pequenos detalhes: aumenta um pouco a cabea, insiste-se um pouco mais na corcova, na elegncia do conjunto que serpenteia. Os primeiros deles que esto aqui no ptio so duros, quase sem nenhum movimento. E os ltimos esto cada vez mais flexveis como se fossem vrtebras, troncos de vrtebras que se encaixam e sobem. Essa pea faz parte tambm dos guardas. Talvez eu tenha mania de defesa. Ahhh, eu acho que isso aqui no deixa de ser uma cidadela sitiada... ameaada. E necessrio ter os guardas, meus guardas no tm armas, mas so guardas. Isso aqui uma figura com capacete, vocs devem ter notado que eles esto em cima do muro que rodeia toda a fbrica. E isso fecha a cidadela... ... com todos os seus mistrios. Capitulo 04 A viso de um apocalipse particular. Um dilvio fez o Rio Capibaribe transbordar, deixando a Oficina submersa. Tomado de pnico, Francisco tenta salvar os inmeros cadernos do seu dirio. Enquanto junta suas memrias, no percebe a canoa sendo levada pela correnteza at o encontro fatal com o bico de um Pssaro Roca, que parte a canoa em dois. Poucos segundos e Francisco est morto. Seu corpo desce lentamente at o fundo do mar. Atrs de um grande mural de cermica, depara-se com uma construo que lembra uma galeria de artes e ofcios. Abre a porta e reencontra todos os seus quadros. Francisco passeia desconfiado pelo lugar. Intrigado com o erotismo daquelas pinturas, ele se pergunta: "Quem era esse louco? E o que pretendia?" - Ah, mas ficou uma arrumao notvel, no ?! Pelo menos, agora, est dando visibilidade aos quadros. timo. - E realmente me agradou muito essa arrumao. Que era catica, eu no podia ver nem o que eu pintava, nem o que eu tinha feito. E agora, em qualquer visita que eu fizer a esse local, tenho disposio uma grande quantidade de quadros, pelo menos, visveis, n? - Esse aqui daquela srie do Castigo. - Olha aqui. Olha aqui essa bengala, t vendo? Aqui, no queixo da modelo. A muleta no queixo. - A cabea de um dos velhos que olha a Suzana no banho. E que se transformou na prpria Suzana. Ficou uma figura feminina. aquela cabea de papelo que tem l no meu ateli. - Isso foi pintado em 1959. muito antigo. Nessa poca, eu execrava figura com carter realista e no queria saber de voltar ao academismo. Isso uma coisa que aconteceu muito recentemente, a partir dos anos 80, quando eu vim para c e comecei a fazer escultura. Ento, a extrema liberdade da escultura me levou a um desejo de reencontrar a figura um pouco mais realista, um pouco mais acadmica. E a minha aproximao com Courbet e Balthus se confirmou nessa poca. Se eu tivesse continuado nessa linha, jamais iria satisfazer no meu esprito a vontade de ter um quadro realista. Eu tinha possibilidade de faz-lo e no queria. De repente, resolvi que queria fazer. Eu no queria chegar ao exagero de dizer: como eu no posso ter um Balthus na minha parede, pintei alguma coisa parecida. Nunca me preocupei com unidade, entende? Eu nunca me preocupei com unidade, porque a sensao que eu tenho de vrios, de vrios. Ns somos vrios ou ns somos todos a mesma coisa. Confundimo-nos. E essa coisa de voc ser cada vez voc prprio, inconfundvel. Voc diz: aquele um inconfundvel. Comeam a dizer isso da minha escultura. Quando no gostam dela muito fcil dizer "aquele um Brennand". Sabe por qu? Porque eles no gostam. fcil voc dizer do que no gosta. Agora, do que gosta no to fcil assim, tem que pensar duas vezes. Mas, o que no gosta voc acerta logo. Quem no gosta da minha escultura diz: "Isso a um Brennand! Entende?" Ento, parece que a escultura tem mais unidade e mais facilmente reconhecvel como um Brennand; a pintura, ao contrrio, dispersa. No entanto, eu no fao nenhuma questo de unidade entre a cermica e a pintura, nem de unidade entre os diferentes quadros que pinto. Eu fao questo de fazer aquilo que desejo fazer no momento. E, se eu acertei, tanto melhor. Esse o grande problema: acertar ou no acertar. - Esse faz parte do conjunto do Lobo. uma figura que se divide em duas partes: o rosto do lobo e um pouco de uma caveira, do lado de c... a morte. - Que coisa, hein?! bom! Essa mulher tinha exatamente esse corpo. Eu no exagerei, no. Essas proeminncias. Ela est com o chapeuzinho vermelho, mas no tinha nada de Chapeuzinho Vermelho. Capitulo 05 Francisco passou a manh trancado em seu ateli, s voltas com um quadro que no conseguia terminar. O estudo j estava parecido com a modelo. E ele no via nada a acrescentar. Mesmo assim, no ficou satisfeito. O quadro foi pintado sobre papel branco, e ainda precisaria de muitas sobreposies at que a figura despertasse o interesse de Francisco. Se pudesse, passaria o quadro no forno. Uma s passagem e as chamas o salvariam. A pintura ficaria to bela e misteriosa quanto suas cermicas. - H duas proeminncias: aqui no pescoo e aqui. O que que ser essa? No ser o pescoo longo que ainda estufa? Ou sero os peitos contidos por esse cilindro estranho? No corpo e no nada. Na cermica, eu tive a possibilidade de identificar uma escultura com um vaso. Aqui est um vaso, no ?! Aqui est, com as suas asas e tal. E daqui para c um passo. Se eu quiser, boto uma cabea aqui e tenho uma mulher! Coloco uma cabea aqui, isso uma mulher. Em termos de cermica. Em termos de pintura, eu no fao isso, mas em termos de cermica fao o que quero. A eu sou picassiano. - Olha que coisa estranha, isso que escorre... Essa abertura que sangra. Que pode ser um outro olho, porque, se voc olhar de perfil, isso passa a funcionar como olho. O olho est aqui, visto de frente, mas se voc olha essa figura de perfil, esse o olho. E eu presumo que do lado de c no tem olho nenhum... no tem. Uma coisa, s vezes, me divertia muito: como eu parto de um pressuposto de que sempre trabalhei em superfcies, eu, por pura brincadeira, pura jocosidade, fazia uma figura, e a pessoa, evidentemente, rodava em torno da pea para olhar como ela era por trs, para se surpreender que era exatamente igual a como ela era pela frente. Isso quer dizer que no tinha frente e costas, a figura se repetia. Por exemplo, a mulher tem quatro peitos, mas no tem costas. Ela tem exatamente o que tem pela frente; voc rodeia e ela igual pelas costas. E eu no faria isso em pintura. Picasso fez mulheres retorcidas de frente e de costas ao mesmo tempo. Ele fez desenho e vrias pinturas nesse sentido. - Essa pea aqui rarssima sob o ponto de vista de realizao cermica. Ela parece tambm... a matria dela parece de uma concreo marinha, uma pea que foi esquecida no fundo do mar e encontrada sculos depois. Alis, ela tem qualquer coisa de figuras que voc arranca de urnas funerrias, como se estivesse acomodada em um lugar qualquer e voc arranca. Tem um pouco de figura fetal tambm, n? Ela tem um rosto de feto. E no h grandes preocupaes realistas, por causa da proporo do brao; voc no sabe se isso brao ou perna, que foi puxado para cima. Se um cabelo ou capacete. - Aqui, uma coisa... uma sucesso de ndegas ou de pernas inchadas que terminam com a cabea de um bicho, tambm sem nenhuma preocupao realstica. - Figuras, s vezes, at de certa forma caricatas, que eu no me permito pintando. - Figuras mascaradas, nas quais s aparece a ponta do nariz. - Rodin no fez um pensador, que aquele homem com a mo no queixo? Esse aqui o meu pensador. O pensamento dele est todo nessa enorme, imensa testa. - s vezes figuras... uma abordagem: ser que eu, como pintor, iria abordar por acaso... fazer a figura de Dante? Dante Alighieri? Eu no teria coragem de tentar fazer um retrato de uma pessoa que eu no conheci. Mas fiz essa figura e batizei de Dante. E um retrato de Dante para ningum botar defeito! uma figura esquisitssima ao mesmo tempo. Capitulo 06 segunda-feira de Carnaval. Uma marchinha pode ser ouvida bem longe dali, abafada por uma estranha e putrefata brisa marinha. Francisco perambula pelo Beco onde costuma fotografar suas modelos. Se recorda de Mara, sua Chapeuzinho Vermelho favorita. Faz vinte anos que a modelo no o visita na Oficina. Consumido pela memria de Mara, Francisco decide remexer gavetas antigas. Reencontra as fotografias de Suzana no banho, da Viva, de Lucrcia, da Cega, da Italiana e, finalmente, as de Mara. como se todas elas estivessem ali. Ele tem vontade de pintar uma cena de Mara, mas as mos no o ajudam, desconfiadas do papel em branco e de suas lembranas. - Quase como se fossem silhuetas de fantasmas. E um pouco animal. H patas, e no ps. Acontece que so demnios. - Por que que eu fiz uma patinadora? O trao o mesmo. Enquanto os outros esto se referindo a coisas, a bichos, a plantas, a peixes, esse aqui pega uma mulher, com extrema liberdade, porque nessa poca eu contornava as figuras com vistas de fazer murais. - Gosto disso. Olha a, vocs descobrindo coisas... - Um bom quadro aquele que o surpreende depois de um longo afastamento. Voc no sabe como pintou, nem como conseguiu, e... aconteceu quando eu vi essas serigrafias. Inclusive essa, mesmo com essa simplificao enorme, porque hoje eu procuro uma linha muito mais realista que me tolha os movimentos. Agora voc veja a liberdade dessa figura com essas pernas... uma perna enorme, a outra curta, mais grossa. Do ponto de vista de perspectiva, a perna que est l deveria ser mais fina do que essa, mas isso no contava, o que importa o movimento, esse movimento, no ?! Quase como se fosse um bumerangue. - A liberdade dos peixes, entre outras coisas, o extraordinrio colorido. Isso ainda me surpreende mais! Porque, aqui, eu j estava usando cermica e sabia que tinha que usar tons terrosos e uma palheta muito baixa, e isso corresponde ao que... na verdade, ao que eu desejava. - Esse um original. Assinado FB 74 - eu assinei durante muitos anos as iniciais e continuo a assinar nas esculturas. O FB que existe nas esculturas, a assinatura, tem a escala da pea, conforme o tamanho da pea, ele cresce. E ao mesmo tempo funciona como um ornato. Como as esculturas so despidas de desenhos, elas so simplesmente volumtricas, sem os seus volumes, a utilizo a assinatura e a data como elemento ornamental. Quando eu assinava a pintura propriamente dita e pintura figurativa, eu era uma outra pessoa, com outros propsitos. Talvez at uma pessoa menor, no sei. E essa pessoa menor Brennand, no FB. O Brennand uma pessoa misturada com literatura, com mulheres, e ... Se eu fizesse o retrato de uma moa do jeito como eu pintava, ela iria reclamar. J uma coisa mais realista, elas no reclamavam. No entanto, no estou arrependido. Mas talvez esse reencontro com essas serigrafias me solte um pouco mais a mo, num sentido de simplificao da figura. Porque isso aqui no tem nada a ver com fotografia. Acontece isso, no . No tem nada a ver com fotografia. Isso aqui a variedade que existe na natureza de frutos, de flores, de borboletas, de pssaros. incrvel! Com qualquer livro sobre histria natural, mesmo que voc no faa olhando o modelo, tudo o que consegue fazer voc no faz mais do que a natureza. E no que seja cpia da natureza, mas no consegue fazer mais que ela. Porm, eu no estava nessa poca, no copiava fotografias, nem me preocupava com isso. - Aqui, talvez uma coisa mais impessoal, entende? Que caligrafia magnfica! Mas isso quando eu tinha mo, n?! S esse FB vale... vale esse desenho. Surpreendente! Capitulo 07 Essa a argila de Oeiras, uma argila rarssima, de caracterstica, sobretudo, de resistncia s altas temperaturas. E ela uma argila laminada. Isso j foi quebrado em torres e j levou chuva, mas ela vem aos pedaos. Voc, quando corta, ela vem como se fosse uma ardsia... e ela tem sido utilizada por ns h mais de trinta anos e no h como modificar. Captulo 08 EVA Hoje dia 11 de junho. Como de hbito, Francisco passou seu aniversrio trabalhando na Oficina. Aproveitou o dia para colocar seu autorretrato em cermica nos jardins da Accademia. De um lado da escultura, escreveu o ano de seu nascimento: 1927. Do outro, deixou um espao em branco. Helcir, seu assistente mais antigo, ficou horrorizado achou a escultura parecida com uma lpide. Francisco afirmou que seu desejo era permanecer ali para sempre. E confessou ao amigo que, quando seu pai lhe entregou as chaves da velha fbrica, ele teve a certeza de que entrava ali para nunca mais sair. Tudo Flui... (Herclito) O futuro tem um corao antigo. (Carlo Levi) - Pai... - A remoo dos escombros do telhado que estavam aqui no cho, o conjunto todo limpo e, finalmente, a reconstruo desse conjunto durou exatamente dez anos. Eu comecei assentando aquele painel em 1977 e terminei esse conjunto em 1987, com um mural l na ponta que se chama "Me Terra". - Olha aqui. - Alm de tudo, alm da beleza da matria cermica dessa pequena inscrio mural, h o significado desta frase. "Se partidos esto os vasos harmoniosos", isso significando que partidos esto os vasos gregos, ento todas as coisas esto partidas ou em vias de destruio, mas assim mesmo o fim do poema no pessimista, porque ele diz: "Mas o barro e a gua continuam a girar nos casebres dos oleiros." Quer dizer, essa renovao da vida e da arte representa a eternidade. Eu s lastimei um detalhe: o ttulo desse poema era "Sinais". O que era altamente significativo, mas por uma questo de composio, ou de pressa, quando eu compus a posio de cada uma dessas letras em relao s pedras, eu me esqueci de calcular que tinha um ttulo acima. Eu no iria alterar por uma questo de pressa. Trabalhei aqui como se tivesse uma data marcada para terminar. E trabalhava, como sempre trabalhei, com sofreguido. E ficou faltando esse ttulo que hoje eu lastimo que no tivesse aparecido, porque era um ttulo altamente significativo: "Sinais". Sinal, o sinal do tempo, o sinal do destino, da criatura humana e daquilo que ela cria. Captulo 09 No interrompam este silncio! No interrompam este sonho! O horror, o horror! Joseph Conrad. - Essas so pedras de Ilhs. Veja que coincidncia curiosa! Isso no deixa de ser um templo funerrio. E eu encontrei isso numa casa funerria. O dono estava mandando arrancar para substituir por um piso moderno. Quer dizer, isso aqui um templo funerrio e este piso - esteve ligado durante centenas de anos. - E essa construo j existia aqui. Isso era um galpo que havia perdido o telhado, e eu apenas no reconstru o telhado lembrando que uma srie de casas no Peru, numa regio que no chove, no tem absolutamente telhado. E vou deixar isso descoberto para sempre. As esculturas vo receber sol e chuva, atravessar noites e dias, e vo durar para sempre se no forem destrudas. S a mo do homem pode destru-las. - Eu gostaria de ler aqui a homenagem que fiz a Gauguin. "Uma homenagem a Paul Gauguin no centenrio de sua morte, acontecida no dia 8 de maio de 1903 na Ilha de Atuona, no Arquiplago das Marquesas - Vrzea - 8 de maio de 2003." Isso aqui como se fosse uma lpide. E aqui a figura dele, que, alis, eu chamo de feiticeiro. Ele tem um quadro feito quase no fim da vida, talvez um dos ltimos quadros, que no um autorretrato, mas que chama de "O Feiticeiro". Eu fiz uma srie de simbolismos, e aqui est o poema de Coleridge: A Balada do Velho Marinheiro - The Ancient Mariner "Desde esse dia, em hora incerta, volta essa angstia extrema; e se no conta a histria horrvel o corao me queima." O outro diz: "Deus te proteja, marinheiro, de teu demnio atroz. Que angstia esta? Com a balestra abati o albatroz." - E aqui a figura... poder-se-ia perguntar: Por que envolvido por uma grade? Ser que tem alguma coisa de evitar que as pessoas toquem na figura? No, absolutamente. No existe esse propsito. As pessoas podem tocar nessa figura o quanto quiserem. Mas porque, de certa forma, to controversa essa situao, esse problema de civilizaes e de culturas invadidas... Na verdade eu no estou deificando... no estou divinizando nenhuma cultura, nem demonizando outra; eu quero apenas dizer: era uma criatura humana e certamente no est no paraso, est no purgatrio. Isso aqui a certeza de que ele ainda pena no purgatrio... Atahualpa. Essa grade ainda o aprisiona, mesmo depois da morte, um prisioneiro. - A mesma coisa acontece com Monctezuma, que nem ao menos est dentro do templo. Ele est a fora e olha o rio Capibaribe, que est a no mais do que 30 metros daqui. - E ali acima de todos, a homenagem final - que essa a finalidade - a Gauguin. Com seu perfil de guia, na realidade, incaico. E ele por vrias vezes faz meno a essa sua ascendncia em que ele se chamava de selvagem, de brbaro. Um selvagem pisando em solo europeu. - Enfim, era alguma coisa que eu no poderia deixar de fazer, e isso conta a histria de um artista que trabalhou parte do sculo XX e entrou em parte do sculo XXI, que passou de raspo pela Europa e que est falando no - uma linguagem to indecifrvel... talvez pouco incomum, um pouco dmod, fora de moda, mas tem um sentido, eu tenho certeza de que isso ter um sentido. No que eu v corrigir nem salvar o mundo, coitado de quem pensar que vai salvar o mundo - vai ajudar a perd-lo. Mas, de qualquer forma, foi algum que no foi indiferente aos fatos, s dores do mundo. Captulo 10 a ltima noite do ano. Francisco escreve no Dirio o relato de seu julgamento final. Um anjo o aguarda na entrada do Purgatrio. Ele anuncia que Francisco o novo profeta e lhe mostra o caminho do Paraso. Francisco nega a homenagem e implora ao anjo que o deixe retornar para a Oficina. "Por que voc quer voltar se o apocalipse inevitvel?", pergunta o anjo. "Ainda h muito por fazer", insiste Francisco. O anjo exige que Francisco entregue o Dirio em troca de sua ressurreio. Francisco sabe que, ao entregar seus cadernos, estar fadado ao esquecimento. Mesmo assim, escolhe aOficina. A ltima imagem que Francisco v antes de sair do Purgatrio a de seu dirio sendo consumido pelo fogo. meia-noite. Francisco fecha o Dirio e o coloca sobre uma pilha de cadernos em sua escrivaninha. - Senta aqui, Hermila. Como o nome de sua me? - Clia. - E quem foi que decidiu seu nome: Hermila? - Minha me. Tinha uma cunhada da minha av chamada Hermila, a ela faleceu, acho que meses antes de eu nascer. - Hermila... Deixa eu botar um filme aqui nessa mquina. Ainda tem aqui, eu acho que um ou dois. Vira de frente. Pode ficar com a mo, mas no to separada. Assim mesmo! Voc est fazendo um pouco de careta por causa do sol, no ? o excesso de claridade - Mas eu vou tentar... - Voc vai tentar nada! Fique como voc quiser. Eu no sou diretor de cinema que exige das atrizes. Aqui est! - Dessa eu gostei. - Por que a t saindo voc, no ? Isso uma coisa que me intriga... Eu gostaria de ter a liberdade de ousar mais, entende, Hermila? A forma feminina me seduz muito... E quando eu pinto... eu fao parecido. A narrao do filme baseada no Dirio de Francisco Brennand, iniciado em 1949 e que ele escreve at hoje. Captulo 11 crditos