♪ ♪ [vinheta] ♪ [IGNACIO] A literatura é emoç ão e sensaç ão. [MAR AL] Eu digo que a minha matriz é a rua. [ADELIA] Ter um estilo é limite. [BARTOLOMEU] Eu acho que é impossível viver sem ler. [MUTARELLI] Tem muito de mim em tudo que eu falo. [MARCELINO ] Dói, eu escrevo. [TEZZA] O ato de escrever vai te dizendo também, um pouco, quem você é. [BARTOLOMEU] "Mesmo em maio, com man ãs secas e frias, sou tentado a mentir-me. E minto-me com demasiada convic ão e sabedoria, sem duvidar das mentiras que invento para mim. Desconheço o ruído que interrompeu meu sono naquela noite. Amparado pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri imprecisa saudade do mundo, confirmada pela crueldade do tempo. A vida me pareceu inteiramente concluída. Inventei-me mais inverdades para vencer o dia amanhecendo sobre névoa. Preencher um dia é demasiadamente penoso se n ão me ocupo das mentiras". [BARTOLOMEU]Quando você escreve, você exerce três coisas!■ fundamentais. A primeira coisa que você exerce é a generosidade. Quando eu escrevo eu faço o melhor de mim. Acompanhando essa generosidade, existe uma outra coisa que eu tenho que ter, que é a humildade. Eu tenho que saber que o meu melhor n ão é bom pra todo mundo.!■ E outra coisa, que é a terceira coisa que eu preciso ão ter, é inveja. Saber que o outro faz melhor do que eu. Isso eu tenho que praticar o tempo inteiro quando!■ você trabalha. Isso é bom demais para a gente, para a!■ gente aprimorar a gente mesmo, para a gente lapidar!■ a gente, porque às vezes a gente fica ão convencido com o que a gente sabe, né? Que a gente nem deixa o outro falar. Eu acho ruim isso. ♪ [BARTOLOMEU] A literatura, para mim, ela é feita de duas coisas que ão fundamentais, que ela é feita da palavra e da fantasia. A fantasia é o que nós temos de mais profundo na gente. A fantasia a gente só conta para as pessoas que a gente ama muito. ão se diz a fantasia para qualquer um, por t ão verdadeira que ela é. O homem é do tamanho da sua fantasia. Se me pergunta que tamanho é o universo, ele é do tamanho que eu sei falar. n ão existe outra dimens ão para isso. Ent ão é sempre essa fantasia!■ que eu trago no texto e preciso da palavra para!■ deixar vir à tona a minha fantasia. E a palavra, para nós, nessa cultura nossa, ocidental, é uma coisa muito importante, porque nós fomos educados escutando que no princípio era o caos, e que aí Ele veio e disse: "Faça-se a luz", e a luz se fez. "Façam-se as águas", e as águas!■ se fizeram. Foi sempre a palavra que organizou o caos, desde o início foi isso para nós, né. Essa palavra que organiza esse mistério todo que está aí. A gente procura a psicanálise porque a gente acredita que a palavra cura, a palavra me organiza, a palavra dá sentido ao mundo. Ent ão a literatura precisa da palavra. Literatura é a palavra escrita. ♪ [BARTOLOMEU] Eu tenho uma formaç ão na área de filosofia, e na filosofia a gente trabalha com a dúvida. Eu n ão tenho acesso a verdade, eu só tenho acesso à dúvida. A única coisa que eu posso ter, é dúvida. Eu n ão tenho verdade. Aquilo que eu fantasio é aquilo que eu n ão tenho. Nós n ão temos capacidade para a verdade. N ão temos! Daí eu gostar da fantasia, que a fantasia, né, é uma coisa que eu tenho mas n ão tenho, que a gente só fantasia aquilo que nos falta. Ent ão eu escrevo o que eu ão sou. ♪ [BARTOLOMEU]Bicho toda vida me encanta.!■ Eu tenho uma fascina ão por bicho. Uma fascina ão incrível. Sempre tem um bicho que aparece na história. Um dia eu estava lá em casa, e eu tenho um problema de coluna, às vezes eu fico muito tempo no computador, e eu deito no c ão do escritório para espichar a coluna, botar no lugar. E bicho me encanta! Aí teve um dia que eu deitei lá no ch ão, tinha passado um monte de e-mail, digitado texto, feito um monte de coisa, deitei lá no ch ão, olhei para a parede, tinha uma formiga descendo. Eu levei um susto t ão grande.!■ Que eu era capaz de mexer no computador, passar e-mail para o mundo inteiro, mas eu n ão era capaz de saber quem botou o desejo do açúcar no coraç ão da formiga. Aí a coisa me pega. Me pega. ♪ [BARTOLOMEU] Eu às vezes sinto que eu escrevo para fazer carinho em mim, sabe? Às vezes eu sinto que eu escrevo para fazer carinho em mim. Às vezes eu termino um texto que eu até jogo fora depois, e rasgo, mas naquela hora que eu escrevi, eu leio e falo assim: "Eu n ão sabia!■ que eu sabia isso". Eu me torno um companheiro meu.!■ É quando eu deixo a fantasia sair e eu nem sabia aonde ela estava, mas eu preciso da escrita para deixar ela vir à tona. En ão essa hora é um carinho que a gente faz na gente. Eu debruço na janela, fumo mais um cigarro e estou tranquilo com o mundo. ♪ [BARTOLOMEU]Na minha obra eu trabalho, obra n ão, nos meus!■ livros, eu trabalho sempre com o problema da memória, que eu acho que a memória é o grande patrimônio que a gente tem. A gente só suporta a memória porque a memória é feita de fantasia. É aonde o vivido conversa com o sonhado o tempo inteiro. ♪ [BARTOLOMEU] Eu vivi o dia de ontem, mas ele podia ter sido assim, assim, assim. Ent ão é muito... a memória, ela está o tempo inteiro conversando com o real. Eu acredito que n ão existe uma memória pura. Eu acho que a memória é ficcional. Toda memória é também ficcional. Que o que aconteceu naquele tempo, naquele tempo lá, eu trago!■ para o momento agora. Ent ão no trazer isso pra cá, eu já trago com a fantasia. Eu já invento com a fantasia. ♪ [BARTOLOMEU] Mas também a gente quer escrever para ser lido também. Que a gente precisa do outro. Indiscutivelmente é uma coisa que hoje eu digo tranquilamente. Eu acho que quando o sujeito lê um texto literário, ele é literário porque ele promove uma reflex ão no leitor e esse leitor reflete sobre a experiência dele, n ão da experiência do autor. Eu gosto disso, n ão é porque foi dito isso, é porque isso me levou a um lugar que o próprio autor nunca esteve. Ent ão eu preciso do leitor mais para decifrar onde eu estou,!■ como eu estou, como eu vou, né. Ent ão eu acho que o fenômeno literário é quando o escritor e o leitor se juntam em um texto e fazem uma terceira obra, que nunca será editada. O texto literário para mim é um texto contido. Quando você diz tudo, você n ão dá oportunidade ao leitor dele se dizer diante do seu texto. Eu acho que um texto literário deve, no mínimo, permitir que o leitor se diga diante dele. Que o que o sujeito lê n ão é a frase que eu escrevo, o sujeito lê é o silêncio que eu deixo entre as palavras. Ali é que a literatura se faz, porque eu acho que um bom texto é aquele que dá palavra ao leitor. Eu disse isso, e o quê você tem a dizer? Que eu gosto muito da metáfora, porque a metáfora para mim, mais do que uma figura de linguagem, a metáfora para mim é uma figura política, eu me escondo nela e ponho as asas no leitor. Deixo ele ir onde ele quiser.!■ ♪ ♪ [vinheta] ♪ ♪ [vinheta] ♪ ♪ [BARTOLOMEU] Lá em casa, quando eu assento para escrever, eu n ão penso na criança. Eu faço naquela hora o que de melhor existe em mim naquele momento. Se eu tiver uma criança como leitora, isso é muito bom. Isso é ótimo. Mas eu acho que todo bom texto literário deve ter vários níveis de leitura, tanto deve permitir a leitura da criança, com a experiência dela, como a leitura do adulto, com a experiência dele. Um mergulha mais profundo, outro mergulha mais raso, outro decifra melhor, outro deixa passar batido, mas tudo bem, eu acho que a literatura é isso.!■ ♪ [BARTOLOMEU]Eu tenho muito medo de falar, por!■ exemplo, literatura para criança. Porque se eu falar assim: "Eu vou escrever um livro para criança", eu me coloco na posiç ão de um adulto, que vou ensinar esses meninos a chegar aonde eu estou. E isso é terrível! Isso é terrível! A literatura que fizer isso, ela n ão é mais literária, ela já é uma autoajuda. A Henriqueta me falou uma coisa que me marcou muito na minha constru ão do meu texto, ela disse que a natureza era muito sábia, mas que a natureza nunca construiu um sol para adulto e um sol para criança. Que a natureza nunca construiu um rio para adulto e um rio para criança, e que n ão era sábio fazer uma literatura para adulto e uma literatura para criança. Ou é literatura ou n ão é. En ão é muito esse comércio hoje, essa sociedade de consumo, que muito imprime essa coisa do livro para criança. Parece que nós, adultos, estamos em um mundo pronto, ideal, maravilhoso, e vamos ajudar essas criancinhas a chegar aonde eu estou. Eu n ão faço isso, em absoluto. Porque o lugar que eu estou n ão é cômodo, eu n ão estou em felicidade perfeita.!■ Eu n ão acabei com o meu medo da morte. Eu n ão!■ terminei com meu modo do abandono. Ent ão eu n ão!■ quero que a criança chegue aqui, n ão. Eu quero que!■ ela descubra o caminho dela. A criança tem um mundo intuitivo, que é a verdade absoluta à intuiç ão. Quando você sabe uma coisa pela intuiç ão, você n ão sabe a partir de um ponto de vista, você sabe porque você está dentro da coisa. Ent ão ter uma criança como leitora é um grande privilégio. ♪ [BARTOLOMEU] É o assunto que determina o estilo.!■ Ent ão como eu trabalhava com alguns elementos da infância, né, ent ão... mas n ão fiz nada diferente. Para mim, n ão. É uma continuidade, é uma coisa minha. Mas foi considerado como um romance para adulto, né. Também lá em casa a gente era muito pobre na infância, e a gente ganhava era palavra de presente. Em casa ão tinha nada para dar, minha ãe falava: "Vai com Deus. O anjo da guarda te leva", né? "Fica com Deus. Deus te abençoe", quer dizer, tinha nada para dar, en ão dá palavra, né?!■ ♪ [BARTOLOMEU]Quando você fala as coisas, as coisas!■ ficam mais leves. O problema é falar. Quando você!■ consegue botar isso em ordem, esse sujeito, o verbo e o predicado, e tal, e você assume isso, isso fica mais leve. Tem uma coisa que é muito interessante que eu acho que acontece comigo, que é!■ a figura da minha m ãe no meu texto. Minha m ãe!■ morreu muito jovem. Minha m ãe morreu com trinta e!■ três anos. E minha m ãe teve um câncer bravo! Bravo, bravo, e ela n ão morria, n ão, porque ela tinha muita vontade de viver, e estava muito jovem. E minha m ãe era uma... tinha uma voz linda, ela era uma soprano, bonita, naquele tempo. Ent ão quando a dor era demais da conta, ela sentava na cama e cantava maravilhosamente bem! A gente sabia que a dor era demais. Ent ão acho que até hoje eu faço isso. Quando pesa muito eu tento escrever bonito. Parece que, né, eu lembro assim, é possível isso. Faço isso tranquilamente. Mas é bravo! É bravo! Ent ão quando você escreve também, eu acho que dói bastante você tentar levar!■ para o campo da poesia a sua dor.!■ ♪ [BARTOLOMEU] Mas acontece que a palavra, antes de ser escrita, ela é também sonora. Quando eu leio meu texto em voz alta, eu sei aonde precisa de uma vírgula, porque vem a respira ão e n ão dá conta. Aonde eu preciso de um ponto final, porque ali eu encerro alguma coisa. Ali eu preciso de dois pontos, porque eu preciso de explicar alguma coisa, né. Talvez eu tenha isso também por uma coisa muito antiga, que antes de eu ser alfabetizado nas letras, de aprender o alfabeto, que eu aprendi com!■ meu avô, eu frequentava, desde pequenininho,!■ uma aula de violino. E eu aprendi ler as!■ notas musicais primeiro do que eu aprendi o alfabeto. Mas aprendi desde cedo esse problema da frase sonora, que me persegue até hoje. ♪ [BARTOLOMEU]Quando eu faço um texto, eu me!■ pergunto se esse texto resiste sozinho. Se ele resistir sozinho, está bom. Se ele precisar!■ de ilustraç ão, nada feito. Sabe? Porque eu!■ acho que ilustra ão é uma escrita a mais.!■ A gente evita qualquer pessoa que se diz ilustrador, mas que repete o texto. E você sabe que tem ilustradores que s ão sensíveis para!■ isso, que s ão capazes de criar uma outra leitura!■ do texto, que enriquece o livro. Eu até hoje me pergunto, que eu escrevo muito pouco. Meus livros s ão muito fininhos. Poucas páginas. Também n ão me proponho a ficar fazendo romance que eu vou gastar seis anos n ão, porque eu n ão sei se eu vou durar isso n ão. Ent ão eu faço tudo muito rápido, muito breve. ♪ [BARTOLOMEU] Tem palavras que eu n ão gosto, tem palavras que me machucam e tem palavras que me ressuscitam, sim. Depende do dia. Por exemplo, tem um livro meu que chama "Mário". Eu vi que existia a palavra "mar" e a palavra!■ "rio". Ent ão quando eu vejo a palavra "mar", eu vejo a!■ palavra "sal". Se eu vejo a palavra "rio", eu vejo a!■ palavra "doce". Se eu vejo a palavra "sal", eu vejo a!■ palavra "lágrima". Se eu vejo a palavra "doce", eu vejo a!■ palavra "sede". Ent ão a palavra me pede para escrever.!■ Eu n ão tenho que fazer nada, é só me colocar a serviço da palavra. Hoje eu costuro, eu acho que todo mundo devia ser alfaiate, porque a gente precisa aprender costurar, amarrar uma coisa na outra, porque tudo é t ão amarrado, sabe? Tudo é t ão amarrado, t ão costurado, que a gente vai na literatura só costurar esses pedaços, só costurar, né. É só costurar e deixar a fantasia dar o ponto final. ♪ [BARTOLOMEU] Meu avô passou a vida na janela. E a família toda criticou meu avô por estar o tempo inteiro na janela, né. Eu hoje passo o dia em frente ao Windows, em casa. De repente eu assusto. Eu assusto, que eu estou o tempo inteiro diante do Windows! É a mesma coisa. A gente está sempre repetindo um negócio qualquer. ♪ [BARTOLOMEU] Eu acho que é impossível viver sem ler. Eu hoje gosto muito mais da leitura do que da escrita. Eu escrevo quando eu n ão tenho mais como, né. Eu preciso organizar aquilo que está dentro de mim, porque escrever é organizar-se. A gente se organiza ao escrever. A gente passa a vida a limpo quando escreve. En ão há uma determinado momento que isso é necessário. Mas hoje eu acho que ler é superior a escrever. Ler é uma coisa mais generosa, você se coloca na m ão do outro, pensa de outra maneira, ele tira você do prumo, ele faz você pensar de um outro ângulo, você tem que ser muito mais receptivo, muito mais humilde diante da leitura. Eu gosto mais da leitura. É uma coisa que eu n ão tenho dúvida hoje: que ler é melhor do que escrever. E outra coisa que eu n ão tenho dúvida, é que escutar é melhor do que falar. Tchau pro cês, tá? ♪