♪ ♪ [vinheta] ♪ [IGNACIO] A literatura é emoção e sensação. [MARÇAL] Eu digo que a minha matriz é a rua. [ADELIA] Ter um estilo é limite. [BARTOLOMEU] Eu acho que é impossível viver sem ler. [MUTARELLI] Tem muito de mim em tudo que eu falo. [MARCELINO] Dói, eu escrevo. [TEZZA] O ato de escrever vai te dizendo também, um pouco, quem você é. [IGNÁCIO] Eu sei. Eu fui ser escritor porque eu era muito feio, muito tímido, muito magro, muito esquisito. E eu na classe, tinha um problema: as meninas não me olhavam. Eu pensava assim quando alguém vai me olhar com admiração? A minha primeira professora do primário dava aula de português todos os dias. Um dia era redação, que aliás, se chamava composição. Eu tinha uma paixão virtual. Essa palavra não existia ainda, mas eu era apaixonado pela Branca de Neve. E eu odiava os sete anões, porque a Branca de Neve sempre foi escrava dos sete anões. Em uma semana a Lourdes falou: Vamos ler hoje Branca de Neve e os Sete Anões . E eu adorei. E pensei: Deixa comigo! É o meu dia! , quando terminou ela leu a minha composição, vamos dizer. A cena final: O Ignácio matou os anões! Hahaha . A classe deu uma gargalhada, virou e me olhou. E naquele momento eu me senti olhado e admirado. Nesse momento eu percebi uma coisa: nem era o mais bonito, nem era o mais bem vestido, nem o mais engraçado. Eu não era nada disso, mas eu tinha o quê? Dentro da minha cabeça, um poder de mexer com os outros e de provocar os outros. Tenho certeza de que naquele momento eu decidi que a solução para a minha vida seria escrever. E jamais me arrependi de ter escolhido esse caminho. ♪ [música] ♪ [IGNÁCIO] Eu entrei para o jornal em 57. Eu comecei a perceber que a linguagem do jornal era a linguagem que me interessava. Era uma linguagem mais seca, mais econômica, mais objetiva, sem adjetivos. O que valia, e que os velhos jornalistas, aquela coisa, diziam: O que interessa é aprender na rua . Eu aprendi na rua. A partir desse momento eu lembro que eu comecei a saber que Ignácio Loyola tinha um caminho que era por ali. ♪ [música] ♪ [IGNÁCIO] Eu já escrevia em Araraquara as minhas coisas. Claro, eram coisas muito ruins. Entende? Eu joguei fora a maioria, que vai que um dia fica por aí e vem: ó, uma obra póstuma! . Póstuma que uma porcaria! Iria ser um perigo. Eu andava muito em São Paulo, e eu andava pela noite. Imagine, um caipira de Araraquara, ver a noite paulistana, aquele monte de boate, aquele monte de bar, aquele monte de botequim, de coisa, de mulheres, de todo tipo, só que eu olhava e anotava mentalmente. Quando eu chegava na pensão eu escrevia pequenos momentos. E um dia aquilo eu comecei a transformar em história. E essas histórias se transforaram em contos e aí o primeiro livro. Um dia eu aprendi que eu tinha que fazer uma diferença, a linguagem jornalística e a linguagem literária. Na linguagem jornalística não podia usar a imaginação, nem invenção, nem mentir, como eu faço na literatura, que é fantasia. Só que aquela linguagem seca do jornal, não ficar usando adjetivo, não ficar usando psicologismo, tudo isso, eu passei para a minha literatura. ♪ [música] ♪ [IGNÁCIO] Houve um momento em 79 que eu fui demitido. E aí o Zero tinha sido liberado e estava vendendo bem. O livro de Cuba estava vendendo bem. Eu tinha uma série de convites para palestras pelo país. E a maioria era paga. Eu falei: Eu vou aproveitar, e eu não vou alugar mais minha cabeça. Então eu vou viver desses livros, eu vou viver ... muita crônica, às vezes me pediam para fazer crônicas para jornais de empresa, para revistas, essas coisas. E aí eu fui vivendo de literatura. Aí veio o convite para ir para a Alemanha. E eu vivi 82 e 83 na Alemanha. E fui sobrevivendo. Até que chegou o momento do Collor, o confisco, e eu me vi sem dinheiro, sem projeto, sem nada, e aí eu voltei para a imprensa. Mas sempre teve uma aproximação, porque nesse meio tempo eu sempre fazia freelance, porque todo mundo me chamava, ou para fazer para jornal ou para revista, era Cláudia, eu fiz muita coisa mesmo para a Vogue, antes de ir para a Vogue como efetivo. Então eu sempre continuei meio jornalista. Eu só não era, não tinha um emprego fixo. Então eu não estava alugando minha cabeça. Aí eu dizia sempre: Eu prefiro viver precariamente do que ficar preso em uma redação . ♪ [música] ♪ Em um determinado dia, na biblioteca de Araraquara, eu li uma biografia de um escritor que, em determinado momento, ele disse: Quem quer ser escritor deveria provavelmente ter uma cadernetinha sempre a mão, e nessa cadernetinha anotar coisas . Anotar o que está em volta, anotar o que ouve, anotar frases, canções, tudo isso, porque esse é o material do escritor. Desde aquela época desci numa papelaria, comprei uma cadernetinha e falei: Já tenho o primeiro material . Até hoje eu tenho isso sempre no bolso. Eu ando por essa rua, anoto grafites, anoto frases de outdoor, anoto em cinema diálogos de filme, anoto em teatro diálogos de peças, e com isso eu vou fazendo um arsenal de coisas. Muita coisa eu não uso, outras eu uso, por que o quê que é inspiração para o escritor? É a vida que está em volta. É aquela coisa de observar e isso eu trago do jornalismo, e passar isso para dentro da vida, da literatura. É capturar os assuntos, capturar as pessoas, capturar as frases. E ir contando isso. Isso é inspiração. Jamais me deu um raio no meio da rua e eu sentei e escrevi um poema, ou me baixou a pomba do divino Espírito Santo e eu sentei e escrevi um romance. É o meu olho o tempo inteiro aberto. É o meu olho na rua, é o meu ouvido. E é isso que é a minha inspiração. Eu tenho que dizer que eu não dirijo e não sei dirigir. Eu ando a pé, ando de ônibus, ando de metrô, ando de táxi, coisa. Nesse andar, nesse caminhar é que eu vou recolhendo coisas. Outro dia vinha pela rua e de repente eu ouvi alguém contando uma história que era um golpe em uma corretora de valores. Era quase uma história policial. E eu me encostei no grupo. Eles entraram em um prédio e eu entrei atrás. Quando o elevador veio, me deixaram entrar. Eu era mais velho. Entrei e falei: Onde eles vão? , e apertei o último andar. Eles entraram e apertaram o andar do meio. E o cara já ia terminar a história. E eu, louco para anotar, porque era uma história que eu podia escrever, que eu podia fazer uma crônica! Quando chegou no 12, eles desceram. E aí eu desci atrás. Todo paulistano é desconfiado. O cara virou, um virou e falou assim: O senhor apertou o 25 e sai aqui, por quê? , eu falei: Porque eu quero ver o fim da história . Aí saímos, ele me contou o fim da história, aí depois descobriu porque sai a minha foto no jornal, e eu anotei, está aqui na cadernetinha. Um dia eu posso utilizar isso. ♪ [música] ♪ [IGNÁCIO] Você nunca aproveita uma pessoa só como personagem. Você aproveita dez, vinte pessoas. Você aproveita o olhar de um, a maneira de falar do outro, o andar do outro, as expressões do outro. E você compõe um personagem. A coisa mais angustiante para o escritor é batizar um personagem. Você faz um personagem perfeito, bem delineado, psicologicamente, fisicamente e tudo. Batizou mal, você não acredita. Cada pessoa de cada classe social tem um tipo de nome. Cada idade tem um tipo de nome, sabe? Os jovens hoje que são Fabianas, Marianas, os mais velhos têm outro tipo de nome. Eu, quando precisava de um nome de velho para o meu romance O Beijo Não Vem da Boca , fui ao cemitério da consolação, naqueles túmulos já arruinados, abandonados, e peguei um nome. Emerenciana. E nós aproveitamos muito os nomes que vem nos papeizinhos quando a gente faz noite de autógrafo. Sempre traz aquele nome e aí você, eu guardo os mais estranhos. [IGNÁCIO] Quando a minha professora primária leu para a classe e a classe riu dos anões mortos, ela me deu a primeira lição de teoria literária, ela falou: Quando o final de uma história é uma surpresa, é um assombro, e te deixa intrigado, você vai continuar pensando nela. E aí a história é bem sucedida . A vida inteira, cada vez que eu termino uma história, eu penso no final, e mexo no final às vezes, sem estragar o conto, mas conduzindo. ♪ [vinheta] ♪ ♪ [vinheta] ♪ ♪ [música] ♪ [IGNÁCIO] Eu sempre quis fazer cinema, a minha frustração é não fazer cinema. Eu tinha que levantar dinheiro, o diretor tinha que escrever roteiro, tinha que contratar equipe, tinha que dirigir equipe, tinha que dirigir o fotógrafo, tinha que dirigir o cenógrafo, tinha que dirigir atores, que é uma coisa muito chata dirigir atores. Então no fim, o que é mais fácil de fazer no mundo? Romance. Senta e escreve, senta e escreve, senta e escreve. Por preguiça eu sou escritor. Os contos são curtas-metragens e os romances são longas-metragens. São todos feitos prontos para serem roteirizados. Tanto que o primeiro romance meu, Bebel Que a Cidade Comeu , que foi feito no cinema pelo Capovilla, ele disse que ele teve muita facilidade, porque ele tirou trechos e juntou e filmou. [HOMEM] E aqui, meus senhores, o nosso maior trunfo: Bebel. [BEBEL] Uma espuma envolvente, uma classe sem igual. Um perfume atraente, Love é genial. Love! . [IGNÁCIO] Não faço nada que eu não tenha gosto e que eu não esteja apaixonado por aquilo que estou fazendo e que não dê prazer. Pra quê que eu vou fazer? Então se eu faço uma crônica, é porque eu estou gostando de fazer a crônica. Eu, nesse momento, por exemplo, não estou escrevendo nenhum romance e já pensei: talvez eu não escreva mais romances , porque eu tenho na cabeça, ele não sai, daí então por que eu vou ficar forçando? Então faço um conto, faço a crônica, vou trabalhar, tenho um livro infantil na cabeça, vou trabalhar nisso. Por sorte, e talvez por algum talento, O Menino Que Vendia Palavras é um livro infantil que deu muito certo. Eu não esperava, nessa minha idade, dar certo com um livro infantil, mas deu. E eu penso na continuação desse livro, porque eu ainda tenho um assunto na cabeça, porque a relação do menino agora é com a professora. A crônica, entre nós escritores, é chamada literatura sob pressão , ou seja, naquele determinado dia, você tem que entregar o seu texto, chova, faça sol, o vulcão entre em erupção, você tem que entregar o texto. O espaço está lá. Esse espaço, em geral é o mesmo, no meu caso são quatro mil caracteres. Eu tenho que entregar na terça-feira ao meio-dia, que é o tempo do preparador de página, de texto e o ilustrador. Então ao meio-dia o texto tem que estar lá. E ao meio-dia o texto está terminado. Até hoje eu às vezes nem sei como, mas ele termina. Consegui até hoje não escrever sobre a falta de assunto, mas por quê? Por causa dessa cadernetinha. Porque no fundo, o que é o cronista? Ele é um documentador do dia a dia de hoje. Se você quiser saber como era o Rio de Janeiro no começo do século, leia Machado de Assis, leia João do Rio, leia Lima Barreto, leia Olavo Bilac, que foram cronistas. Se você quer saber como que era que as pessoas andavam, usavam e se vestiam, leia o Rubem Braga, o Fernando Sabino, o Otto Lara Resende. Se você quer saber hoje em dia como são as coisas, leiam a Danusa, o Jabor, leiam esses cronistas que estão retratando esse dia, que no fundo é o material para a história do cotidiano no futuro. No Rio se falava assim, em São Paulo assim, em Belo Horizonte assim. Como é essa cidade hoje? Os cronistas estão retratando. Então isso, esse é o cronista. ♪ [música] ♪ [IGNÁCIO] Eu tenho uns livros que são chamados livros institucionais , eu sou muito chamado, quando eu estou disponível, para fazer livros assim, histórias de empresa, história de empresário e tudo. Então são temas que me interessam, porque eu tenho curiosidade sobre eles, então eu faço. E são mais de trinta livros. Mas essa não é a minha bibliografia, quer dizer, os livros aos quais eu me entrego. São encomendas que eu faço, com toda dignidade possível, mas que meus livros são crônicas, conto, a peça teatral, o romance, o livro sobre Berlim, o livro sobre Cuba. Cada um é cada um, é tão diferente um do outro. Tem um que eu gosto muito, que é Dentes ao Sol , que é um livro que se passa em Araraquara, que é o meu maior fracasso. Pouquíssimas edições e a crítica jamais falou desse livro. Claro, agora você tem Não Verás País Nenhum , que foi um livro muito celebrado e que mais do que nunca agora o aquecimento global está aí, eu já falei; o congestionamento em São Paulo está aí, eu já falei; o problema da água está aí e eu já falo nesse livro, entende? Então o Amazonas é um deserto no meu livro, o Amazonas caminha para isso. E o Zero foi o livro que me lançou nacional e internacionalmente. Então esses sãos os livros, os livros badalados. O livro sobre Berlim também foi muito vendido, que era tempo único, livro que falava de Berlim com o muro. Ele servia de guia, as pessoas iam para a Alemanha com o livro na mão, para Berlim com o livro na mão. Os institutos alemães recomendavam. E a essa altura, que não tem mais o muro, é o único livro que te dá como documento como que era a vida na cidade naquela época. Então esses são. Agora, eu gosto deles todos, se eu não gostasse eu não deixava mais reeditar. Eu tenho, assim, uma consideração, eu tenho uma coisa com professor, muito grande. Porque os professores foram fundamentais na minha carreira. Essa professora desse livro está viva até hoje, eu vou falar até disso. E eu converso. Então na minha idade, 72 anos, eu chego em Araraquara e falo com a Lourdes, foi quem me ensinou a escrever e a ler, e isso é muito bonito, entende? Aí eu chego e ela diz assim: E o menino, o quê que tá escrevendo? , que eu ainda sou um menino para ela. Eu entrei na escola dela com 7 anos, e ela me ensinou até os 10, 12. Então ela continua com aquela coisa. E aí eu quero mostrar como que essa coisa é fundamental. O professor hoje é uma coisa desprezada, é uma coisa vilipendiada, é uma coisa ultrajada nesse país, quando devia ser fundamental essa figura. Lembro que na minha época, claro, faz muito tempo, mudou muito, mas mudou para pior. Os professores eram as figuras mais importantes da cidade. E o quê? E ganhavam para isso. E eu lembro que eles todos tinham uma casa muito boa, a gente admirava a casa. Alguns tinham carro. Então eles eram, e eles davam aulas incríveis. Alguns não, tinha alguns muito chatos, que não sabiam dar aula e coisa. Outros não, porque eram apaixonados pelo que faziam e tinham condições de fazer o que faziam. Hoje isso não existe. Então eu quero um pouco mostrar essa coisa do professor que descobriu o talento em uma pessoa, que teve a sensibilidade para isso. ♪ [música] ♪ [IGNÁCIO] Eu não sei se a literatura tem papel, e não acho que o escritor tenha missão. Nós escrevemos, e a literatura reproduz o mundo que a gente trabalha. A literatura é emoção e sensação, eu fui de uma geração que acreditei que podia mudar o mundo, não, podia fazer a revolução e colocar armas nas mãos das pessoas. A literatura não faz isso. Entende? Você vai amadurecendo e descobre. Ela vai povoando as cabeças, ela vai conscientizando, vai mostrando a vida como é, se essa vida é boa, se essa vida é ruim, entende? A literatura procura dar um sentido para a vida, como nós não descobrimos esse sentido então nós continuamos a escrever. Então para mim literatura é isso, a literatura é prazer, é divertimento, é angústia, é compulsão, é impulsão, é necessidade. Eu acho que a gente faz literatura por vingança, entre aspas. Vingança o quê que é? É vingança contra as condições de vida que nos cercam, contra a situação do mundo, contra as rejeições que estão dentro da gente, contra as frustrações, contra as desilusões, contra os conflitos interiores, contra tudo isso que às vezes pode nos amargar, tá? Pode enlouquecer. O quê que é o Otelo se não o grande problema do ciúmes? Quando Cervantes escreveu Dom Quixote, o quê que era? O Cervantes era um soldado, um soldado manco que queria pertencer ao grande mundo da cavalaria, nobreza, mas ele não chegava lá. Então no fundo ele fez um romance há 400 anos fundando a moderna literatura em que ele se vingou daquela condição dela e ironizou aquele mundo, aquele mundo da cavalaria, de uma nobreza superficial, arrogante, entende? Então a literatura é um pouco isso, é a vingança da gente, entre aspas. [IGNÁCIO] Imaginação e realidade. É o que compõe as minhas coisas. É o meu delírio, é a fantasia, é onde eu me divirto, é aonde eu tenho prazer. Eu não sei como vai ser se algum dia eu falar: Agora não vou escrever mais . Realmente vai ser um momento muito complicado. [IGNÁCIO] Parou assombrado. Olhou para o chão, a tampa circular de ferro se movera, tinha certeza. Em volta a vida prosseguia, todo mundo correndo para lá e para cá. A tampa suja fazia um esforço para levantar-se. Alguém estava a forçá-la, tentando sair. A tampa movia-se regularmente com rangidos que pareciam lamentos. Os que passavam, insensíveis. A tampa se abriu. O observador, espantado, ficou a olhar o homem que emergia, pouco a pouco, sujo de óleo, tinha o ar cansado e o sol da tarde feria sua vista. Saiu. O homem puxava pela mão um fio grosso e negro. O observador não teve dúvidas, muniu-se de uma tesoura e correu. Rápido, cortou com dificuldade o fio, depois foi a um telefone e ligou para um pronto socorro, Tudo certo, tudo certo, corram! Tomei o primeiro cuidado, cortei o cordão umbilical. A rua acaba de parir um homem . ♪ [música] ♪