♪ ♪ [vinheta] ♪ [HOMEM] A literatura é emoção e sensação. [MAR AL] Eu digo que a minha matriz é a rua. [MULHER] Ter um estilo é limite. [HOMEM] Eu acho que é impossível viver sem ler. [HOMEM] Tem muito de mim em tudo que eu falo. [HOMEM] Dói, eu escrevo. [TEZZA] O ato de escrever vai te dizendo também, um pouco, quem você é. [MAR AL] "Foi na loja de Chang. Enquanto esperava que ele embalasse os filmes que eu havia comprado, distrai os olhos nas fotos da vitrine. O rosto de uma mulher no porta-retratos capturou a minha atenção. Era jovem ainda, e muito bonita. Tinha os olhos grandes e escuros e sorria como se estivesse vendo, atrás de quem a fotografava, algo que a deixava imensamente feliz. Só vi mulheres sorrindo daquela maneira quando olhavam para gatos ou crianças. 'Que rosto maravilhoso', eu disse. E ouvi uma voz às minhas costas: 'muito obrigada'. Eu me virei e dei de cara com ela. A mulher do porta-retratos. Os cabelos estavam mais compridos e sorria de um jeito bem diferente do sorriso da foto, um rosto com uma luz extraordinária. Cravou em mim um par de olhos cor de lodo de bauxita, perdi o rebolado. 'Desculpe', eu disse. Ela balançou a cabeça sem tirar os olhos dos meus. 'Que pena! Tanto tempo sem receber um elogio e quando recebo logo depois pedem desculpas'. Senti um espasmo elétrico me percorrer abaixo da cintura. Com o canto do olho, vi que Chang me observava. 'Nesse caso mantenho o elogio', eu disse. 'Que bom, fico feliz'. E continuou feliz ao encostar-se no balcão para entregar a Chang um canhoto de revelação de filmes. Usava uma camiseta, que deixava à mostra em seus ombros, meia dúzia de sardas e as alças de um sutiã preto. O professor Benjamim Schianberg escreveu sobre as tentações em seu livro 'O que vemos no mundo'. Segundo ele, alguns homens sublinham seus desejos, projetando-os em um plano apenas mental, e isso é suficiente para satisfazê-los. Outros, diz Schianberg, apesar de resistirem com diferentes graus de esforço, acabam por ceder às tentações. São o que ele chama de 'homens de sangue quente'. Ela abriu o envelope e espalhou as fotos sobre o balcão de vidro. Um arco-íris; o número de metal enferrujado na fachada de uma casa antiga; raízes de uma árvore que pareciam um casal num embate amoroso. Ela notou meu interesse. 'Gostou?' 'Essa aqui é muito boa!', indiquei uma das imagens. Faixas de sol entrando pelas falhas do telhado de uma casa em ruínas. Poesia e precisão". ♪ [MAR AL] Eu, desde que me dou por gente, eu queria ser escritor. Eu nasci em uma fazenda, eu fui criado até os seis anos de idade em uma fazenda. Eu sou um cara que vi uma televisão pela primeira vez aos quatorze anos. Então para mim, a palavra está ligada àquela coisa de se contar histórias, de se contar os tais causos. Então para mim a palavra é fundamental porque ela apresenta o mundo. Eu não vi o mundo por imagens, eu vi o mundo inicialmente por palavras. [MAR AL] Então sou um cara formado por essa tradição oral de contar história. Isso sempre me apaixonou. A ideia de que você, com a palavra, você pode disparar a imaginação do outro. O ofício pra mim, desde muito novo estou ligado à palavra, mais que à palavra, à arte de contar histórias. E o melhor de tudo, poder mentir à vontade. Eu sou um grande mentiroso, como todo escritor. O Drummond dizia que lutar com palavras é a luta mais vã. Eu diria o seguinte: que é muito difícil você trabalhar com palavra, porque na verdade você está tentando colocar no mundo, através das palavras, algo que não existe. E você tem que convencer o outro, sem nenhum outro recurso que não seja a palavra, ou seja, você tem que disparar a imaginação da pessoa através da palavra. Então é uma coisa maravilhosa quando você consegue. Nem sempre é possível. [MAR AL] Então quando alguém me procura e fala sobre os meus livros e diz assim: "Isso aconteceu de verdade?", eu recebo isso como um elogio, porque significa que eu convenci aquela pessoa de tal maneira que ela acreditou que aquilo era verdade. Quando eu aprendi a ler e a escrever, eu tinha um vício que era o seguinte: eu chegava em casa e eu queria escrever a história daquele filme que eu tinha acabado de ler, porque eu demorei para gostar de livros. Eu gostei primeiro do cinema. Eu fui muito leitor de quadrinho. Eu fui muito fanático por quadrinho no tempo que o quadrinho não chamava quadrinho, chamava gibi. O gibi tem duas coisas, duas características interessantes. O gibi é o cinema, né? Uma história em quadrinho é um filme. É o quadro estático. A única coisa é que é um plano estático. E também a questão do diálogo. Então essa coisa de você ter o ouvido para o diálogo, nasce para mim nas histórias em quadrinhos, porque o balão, o espaço é curtinho, então você tem que sintetizar, e para mim, a maneira como eu escrevo, essa coisa do corte na minha literatura, que eu sempre gostei da coisa fragmentada, sempre, o salto, né, é uma coisa que o cinema tem. Mas a história em quadrinhos tem ainda antes do cinema. Então para mim quando dizem "A sua literatura é muito influenciada pelo cinema. A sua prosa é cinematográfica", absolutamente não me incomoda, mas eu sei que a verdade é outra. A minha prosa é cinematográfica porque ela tem uma relação muito estreita com a forma de narrar do quadrinho. ♪ [música] ♪ [MAR AL] Eu fiquei cinco anos no hospício. Me pareceu, assim, que lá tinha uma experiência interessante humana. Eu fui inicialmente para fazer uma coisa e acabei indo trabalhar diretamente com, vamos chamar pelo nome, com os loucos. Fui fazer um jornalzinho com eles. Quando você fecha a porta do hospício, para dentro do hospício, todas as regras que valem aqui fora deixam de valer. E eu aprendi algumas coisas essenciais sobre o ser humano, sobre as profundezas do ser humano. Então, assim, os melhores personagens que eu encontrei foram dentro do hospício. Em um certo momento da minha vida, eu descubro a literatura. E aí eu percebo que este, sim, é o grande negócio que eu quero fazer na vida. Todas as histórias que eu conto, eu digo que a minha matriz é a rua. Eu sou um cara, por exemplo, que eu sou andarilho. Eu não tenho nem carro. Eu ando a pé por São Paulo o tempo inteiro ouvindo. O tempo inteiro vendo. Eu ouço as pessoas conversando na rua, para mim é um estímulo, pra eu querer bolar alguma coisa, pra que a minha imaginação dispare, digamos assim. Já disseram pra mim que o emprego ideal é ascensorista, que ouve só um pedaço da história. Ascensorista é aquele cara que ouve só um pedaço da piada, né. Pessoal sai e ele tem que imaginar o resto. Então para mim seria o ideal ouvir uns pedaços de histórias e completar o resto. De repente eu ouço um cara falar uma coisa, eu vejo um personagem e isso pra mim é um cinema ao ar livre, em tempo integral. E já que não dá para ouvir as histórias completas, eu invento o resto que falta. Essa maravilha do dia a dia é uma coisa que eu necessito pra minha literatura. Eu jamais seria um escritor de gabinete, um escritor fechado em casa. Sem a rua, eu não sei escrever. Então eu necessito muito do outro. Agora, como é que isso se dá comigo assim, é muito desorganizado. O mais caótico possível. A história seguinte, gente, muito mais do que as cidades, me interessa o humano, me interessa o outro. Eu acho que o outro é que me interessa. Eu tenho curiosidade pelas pessoas. Isso vai sempre me encantar. Então é uma fonte, e pessoas são fontes inesgotáveis de problemas e de histórias. Acho que, assim, sobre isso que está fundada a minha literatura. O jornalismo para mim era uma maneira de eu comprar o meu tempo para escrever literatura. Sempre foi assim na minha vida. Eu digo sempre que eu coloquei a literatura como um objetivo na minha vida para ser feliz. Trabalhei em jornais, fui funcionário público, trabalhei em jornais. Eu fiz um pouco de tudo na vida. Tive uma experiência muito importante no jornal, que também é marcante pra mim, que foi, durante algum tempo eu fui repórter policial em São Paulo. Me aconselharam, me disseram o seguinte: "Você vai trabalhar no submundo". Então recebi dois conselhos: comprar uma arma e não cheirar. E eu achei bacana. E eu não comprei arma e não cheirei, mas eu mergulhei com mala e cuia no universo dos marginais. Então você tinha, fora a vantagem de que eu trabalhava na época no Jornal da Tarde, que era um jornal que estimulava o texto literário. O jornal não queria o texto padrão, o jornal tinha ambição de ter um texto com melhor tratamento. Eu me lembro do meu editor, falava assim: "Olha, vai fazer essa matéria aqui. Eu quero uma novelinha policial". Então você ia e se ligava em detalhes meio bestas. Você não precisava só do fato, você precisava de todo entorno do fato. Então você entrevistava pessoas que não tinham visto o crime. Mas interessava o depoimento daquela pessoa. Então quantas e quantas vezes o fato em si ficava nas últimas três ou quatro linhas e você contava toda uma história. Mas o legal é que eu exercitava o estilo literário. A verdade é a seguinte: eu sou um vagabundo profissional. Eu deixei o jornalismo em 90, nunca mais trabalhei, nunca mais tive patrão. Claro que eu fiz outras coisas, porque isso aqui é uma puta ilusão, gente! Isso aqui é uma cachaça maravilhosa, sem a qual a gente não vive. Mas não paga as contas! Eu vivo do meu trabalho como redator. Eu sou redator, eu escrevo para bancos, para, sei lá, eu faço o que aparece, eu faço canto e dança. Eu digo que faço canto e dança. Onde aparece, eu ainda vivo disso. Qual é a maior vantagem disso? É você não depender de grana para escrever. É você escrever pelo prazer. Eu sei que eu estou escrevendo não é para ganhar dinheiro. ♪ [MAR AL] Ao contrário do que acontece com a maioria dos escritores que trabalham com jornalismo, que eu conheço, que dizem que o jornalismo atrapalha a literatura, no meu caso acabou facilitando, acabou sendo uma coisa positiva. Primeiro porque treinou o meu olhar, essa coisa que eu digo de estar na rua, de a literatura nascer na rua, para mim é essencial. Eu sou capaz de olhar para certas coisas muito detalhadamente. A segunda coisa é a questão da linguagem. Eu sou um escritor que gosta muito da concisão, do texto enxuto, do texto magro. E o jornalismo prega isso como regra básica, você não se exceder, não adjetivar em excesso. Então para mim o jornalismo foi muito positivo, ao contrário do que acontece com os escritores que dizem que o jornalismo acaba por esterilizar o texto literário, para mim foi positivo, para mim foi uma coisa, eu, assim, eu acho que acertei na profissão pelo menos. ♪ [MAR AL] A literatura juvenil é um mercado maravilhoso. A literatura juvenil, porque os livros são adotados em escola, tem grandes tiragens. Por exemplo, eu fiz uma experiência ótima na literatura juvenil. Os livros vendem, fiquei feliz, conheci muita gente, mas considero encerrada essa experiência. Então, um pouco porque eu me afastei da literatura juvenil foi essa história de você ser obrigado a tratar de certos temas que interessam aos jovens. Eu acho que a literatura, para mim, pessoalmente, já que eu não vivo disso, eu não vivo disso, não dependo disso pra viver. Se eu dependesse disso pra pagar conta, eu tava fodido! A verdade é o seguinte: eu escrevo com absoluta liberdade. Eu escrevo sobre o que eu quero, quando eu quero, do jeito que eu quero, e eu acho que o escritor, ele precisa dessa liberdade. Se ele realmente começar a se prender em coisas, daqui a pouco ele está escrevendo manuais. E eu acho que o ideal é você deixar a loucura aflorar etc., que é o grande barato, é o grande prazer de você fazer isso. ♪ [MAR AL] Que cheiro tem a literatura brasileira? A literatura brasileira cheira que nem o brasileiro. Às vezes cheira mal, não é perfumadinho, pega ônibus, mora na periferia, mora mal, tem poucos dentes na boca, tem um monte de filho pra criar, tem conta vencendo, tá indo mal no emprego, detesta o patrão, ama a mulher mas não se lembra disso, sabe? Não se lembra disso porque a vida está muito pesada, enfim. Tenta se manter em pé e com a cabeça erguida, mesmo quando está caindo. ♪ [vinheta] ♪ ♪ [vinheta] ♪ [carro freando] [portas batendo] [ônibus freando] [MAR AL] O que acontece? O cinema tromba na minha vida. Um dia um diretor lê um livro meu e resolve filmar uma história. E ele precisava de ajuda para fazer o roteiro, me chamou, eu fui ajudar, fui contar o resto da história, que não estava contada, e assim eu virei roteirista. Olha, a questão do roteiro, assim, eu não tenho nenhum problema com adaptar textos da minha autoria. Tem autores que preferem não mexer com o próprio texto. Porque, pra mim, a experiência literária, ela se encerra no livro, acabou ali. Se alguém acha que aquele livro pode render uma peça audiovisual, que no caso é o cinema, não sou eu, é um diretor que necessariamente me procura para adaptar. A partir desse momento, o texto, na minha opinião, ele está à serviço dos desejos daquele diretor. O meu trabalho, como roteirista, vai ser botar no papel algo que atenda às necessidades para ele fazer aquele filme que ele enxergou. Quando é o caso de texto de outro autor, não muda muito pra mim, porque eu vou me servir daquele texto como se fosse uma massa de moldar. Como se, assim, eu vou desrespeitar aquele texto, necessariamente, porque se você vai abordar o seu texto ou o texto de outra pessoa com excessivo pudor, você não consegue fazer roteiro. Eu acho que o ideal, no caso do roteiro, é você desrespeitar o original, afinal você vai transportá-lo para outra linguagem. Alguém já disse que mexer com o próprio texto é como fazer autopsia no próprio filho. Eu diria para você o seguinte: que pra mim não tem esse problema. O texto já não é meu. Aquele texto, se eu publiquei, tem pessoas que já leram aquele texto e têm até ciúme do texto, tem uma visão muito própria daquele texto e enxerga ele muito diferente do que eu enxerguei, daí a riqueza da literatura, por sinal. Se um diretor chega pra mim e diz: "Teu livro me inspirou a esse filme", eu vou ter o maior prazer em ajudar a concretizar esse filme. [MAR AL] O cinema chegou muito cedo na minha vida, eu entrei no cinema a primeira vez eu tinha seis anos de idade, eu não sabia ler. O cinema chegou na minha vida antes da literatura. Agora, eu nunca quis trabalhar com o cinema. Eu sempre achei que em matéria de atividade economicamente inviável, bastava a literatura. Eu trombei com o cinema por acaso, porque um diretor quis adaptar um texto meu, precisou de ajuda, então eu virei roteirista por aí. Agora, influência, eu costumo dizer o seguinte: você, o próprio autor, falar de suas influências soa pretencioso, porque evidente que ele só vai citar os grandes autores. Ele não vai citar as fotonovelas, os gibis, as bulas de remédio que ele leu. Eu digo que tudo que me emociona de alguma forma me influencia. Então eu não seria capaz de dizer pra você quais são os escritores que me formaram. Todos escritores que eu li, e são muitos, e eu gostei, certamente deixaram marcas em mim. E o cinema, então, nem se fala, porque eu vejo cinema há muito tempo. Vejo cinema com frequência. Apesar de mexer com cinema, eu continuo gostando de cinema, porque eu conheço muita gente que quando começa a mexer com cinema, passa a detestar aquilo, nunca mais vai ao cinema. Aquela história "eu mexo com cinema", não, eu não mexo com cinema. Eu gosto de cinema, e de certa maneira tenho o privilégio de poder fazer cinema em um lugar complicado de fazer cinema, que é o Brasil. [MAR AL] O cinema é a coisa mais complicada, porque, assim, é lindo, né? Adaptação literária pra mim não tem segredo nenhum, por quê? Porque eu sou escritor. O roteiro é uma receita. Existe uma forma de escrever um roteiro, de enunciar o roteiro. Existe uma linguagem. Quanto a questão de desrespeitar o livro, eu recomendo. Quando você vai adaptar um livro, o ideal é você desrespeitar o livro e pensar no filme. Não adianta ter pruridos se você vai adaptar um livro. O roteiro, na verdade, é uma peça informativa, ele não precisa ter estilo. Ele diz assim: "João sai de casa". Essa é a parte técnica do roteiro, a parte chata. Eu nunca tive a ilusão de que é possível adaptar um livro para o cinema. Nunca tive essa ilusão. Talvez por ter ido ao cinema muito cedo e ter descoberto a literatura muito cedo, pra mim ficou claro uma coisa: eu nunca saí de um cinema dizendo assim: "O livro era melhor". Nunca! Por quê? Porque o livro é sempre melhor! O livro é outra coisa! Outra coisa que é muito problemática com relação a roteiro: o roteiro é uma peça que eu entrego para um diretor, é como uma carta em branco, um cheque em branco, porque eu não sei que filme ele vai fazer daquele roteiro. Agora, eu tenho uma certa, eu continuo com aquela dificuldade de enxergar o roteiro, a peça roteiro, como literatura. Eu acho que um livro, um roteiro é literatura na mesma medida que um livro de culinária é literatura. Porque quando você escreve um livro, você faz o leitor projetar um cinema na cabeça dele. O roteiro não faz esse projeto. O roteiro é seco. Eu digo que o roteiro é uma peça informativa. E como tal, há uma dificuldade pra mim dessa compreensão de que a dramaturgia do roteiro tenha tanta validade. Eu acho que o roteiro é legal, ele é uma promessa, ele é quase um compromisso de compra e venda, ele não é a escritura. Sabe? É uma promessa que nós vamos fazer algo aqui. Agora, o que vai virar isso? Só olhando o corte final do diretor pra gente saber. O caso do "Invasor" foi assim: o Beto me perguntou: "Qual é o nosso próximo filme?", olhei para ele e falei: "Não tenho a menor ideia. Eu sei qual é meu próximo livro". Ele falou: "Qual é seu próximo livro?", eu falei: "Eu tô escrevendo um livro chamado 'O invasor''". Então eu fui escrevendo o livro em forma de roteiro. Fui descobrindo o que acontecia na trama. Fizemos o roteiro, e eu abandonei o livro, porque eu escrevo sem saber nada do que acontece. Eu vou descobrindo à medida que eu escrevo. É o maior barato pra mim, eu sou o meu primeiro leitor. Eu sou meu primeiro leitor. Eu tenho que me agradar, senão eu não publico. Acontece que "O Invasor", eu, resolvidas todas as pendências da história, eu não vi razão para escrever. Por que eu escreveria o livro? Já existia o roteiro. Ia fazer filme. Eu abandonei. Eu escrevi um pedaço, não gostei muito e aí ele começa a filmar. Quando ele começa a filmar, ele começa a definir algumas coisas que me prejudicaram muito. Porque, por exemplo, o Beto escolhe o Paulo Miklos para fazer o papel do invasor, do Anísio. E eu fui para o set de filmagem, eu sou amigo do Paulo. Eu quando vi o Paulo fazendo o personagem, toda hora que eu pensava no meu personagem tinha a cara do Paulo Miklos. E não é fácil você pensar no Paulo Miklos o dia inteiro, é uma coisa... acho que nem a mulher dele pensa nele assim, com tanta frequência. E eu ficava com aquele problema, porque eu tinha que me libertar do filme para voltar para o livro. E foi um trabalho de cão. Eu vou dizer para você: foi o livro que mais me deu trabalho porque eu sabia muito sobre o livro. A única coisa que me salvou foi o seguinte: quando eu comecei o livro, eu não sabia que o personagem morria no fim. Então, esse tipo de trabalho eu jamais quero repetir. Você ter um livro pela metade e voltar para o livro depois que alguém está fazendo um filme, porque você começa a enxergar os personagens em carne e osso. Até então eu tinha uma visão do meu personagem que era muito diferente do Paulo Miklos. Desculpa, né. Paulo Miklos é igual a ninguém. Então esse tipo de procedimento você só vive ali ao vivo, a partir de que você sai desse mundo, volta para o seu livro, sendo uma história que você já sabe tudo sobre ela, então ela não contém desafio nenhum. Então, assim, eu espero, na minha vida, nessa encadernação, nunca mais voltar a pegar um livro pela metade depois de ele ter sido filmado. "O Invasor" foi uma experiência única nesse sentido. Singular. [personagem fazendo sons de revólver] [PERSONAGEM] Respeito é para quem tem. [MAR AL] A partir de um certo momento na minha vida, e a experiência no hospício tem a ver com isso, eu deixei de me preocupar com o que podem pensar de mim. Que é uma coisa importante quando você escreve. Então essa história de comportamento, eu nunca me preocupei. Eu não estou ligando para nada, cara! A partir de um certo momento, a história de acharem que eu sou meio louco, sou meio esquisito, isso aí eu sou desde criança. Eu sou estranho. Eu sou aquele cara que ficava escrevendo de madrugada. Imaginem vocês, eu escrevo em cadernos. Eu escrevo à mão. Quer algo mais louco que isso? Agora, a coisa da loucura, pra valer, pra mim, o grande momento da loucura pra valer, é o momento que eu vou escrever. Esse é o momento da loucura. Por quê? Porque eu vou lá dentro. Eu vou naquele lugar que eu estou descrevendo. Eu tô lá dentro. Agora, a loucura é um território essencial para qualquer escritor. Se você não tem a capacidade, o medo de mergulhar... eu tenho uma coisa a meu favor, tudo que me ocorre na imaginação, eu coloco no papel, sem o menor medo que alguém leia. Agora, o que é que as pessoas vão ler do que você escreve, se você tiver problema, não publique. O escritor, quando é que o escritor tá pronto? Quanto é que o escritor tá pronto? No momento em que ele escreve coisas que nem ele sabe direito porque que ele está escrevendo. Mas mesmo assim ele se permite essa loucura. Ele não quer entender tudo. Eu vou todos os dias a uma escola que ensina a escrever. Todo dia. Não falto a uma aula, cara. Todo dia, quando eu tô em casa, eu abro um livro e leio. Porque a literatura tem uma vantagem, a literatura você só depende de você. Você depende de ter, no meu caso, que escrevo à mão em cadernos, eu dependo de ter uma caneta e um caderno. Não preciso nem de máquina de escrever, nem de computador. Às vezes eu tenho um título e acho que aquele título tem uma história escondida por trás. Às vezes eu tenho uma frase. E ao contrário da maioria dos escritores, eu nunca tenho a história pronta quando eu começo a escrever. Eu sou meu primeiro leitor, porque eu tenho que me convencer, eu vou contando uma história, eu vou descobrindo a história à medida que eu escrevo. Evidentemente que isso é um processo muito perigoso, porque você pode chegar em um momento da história em que você não sabe para que lado ir, não está planejado. Mas eu ainda acho que esse é o momento de maior prazer, você descobrir a história, como levantar um pano e enxergar o que tem embaixo. São três instâncias diferentes, na verdade, são três linguagens diferentes, e as três, de certa maneira, são maneiras de se contar uma história, né? Mas cada uma com a sua, com o seu grau de coisas específicas. Por exemplo, no jornalismo você não pode inventar nada, em tese, porque, claro que se inventa muita coisa em jornal, né. Eu acho que jornal hoje em dia, por exemplo, não dá pra acreditar nem no horóscopo, não é isso? Mas, por exemplo, roteiro, ele tem uma série de questões específicas de linguagem de roteiro, de apresentação de roteiro, do enunciado do roteiro. E a literatura pra mim é o território da liberdade, é o território onde a imaginação preside, onde o importante é mentir bem, é mentir bem de modo que as pessoas acreditem que aquilo é verdade. Faço roteiro com relativo prazer, faço jornalismo com relativo prazer, mas do ponto de vista de escrita, nada se assemelha à literatura, à mágica da literatura, nada no mundo me encantou como a literatura me encantou. É por isso que eu faço a literatura. [MAR AL] "Nunca dei presentes a ela. Nunca recebi nada. Não conhecia a letra dela. Nunca a vi escrevendo. Não sei se sua caligrafia era redonda ou inclinada, legível ou feia, ou se ela colocava bolinhas em lugar dos pingos nas letras. Eu nunca disse que a amava, nem a ouvi dizer isso pra mim. Nunca falamos de amor, de filhos, de amantes, do passado, do futuro. Fodíamos, apenas. Nunca soube seu signo, nem ela o meu. Não sei se ela acreditava em Deus, em reencarnação ou em horóscopo. Não sei se ela gostava de gatos ou se pensou em colecionar selos. Nunca perguntei a ela se se interessava por política, futebol ou mesmo se tinha o costume de se masturbar. Não sei se ela cozinhava bem ou o prato de que gostava mais. O que achava da moda? Ela jamais me falou. Curtia samba? E caipirinha? Como foi quando criança? Ela não me contou. Qual seu número de sorte? Eu pagava para saber se alguma vez aconteceu de ela olhar com desejo para outra mulher. O nome de seus pais, o que ela achava de homens com barba, das loiras, de armas e tatuagens. São coisas que nunca vou saber. Não descobri se em alguma ocasião ela passou fome na vida. Se teve uma tia epilética. O que achava dos pretos? E dos cavalos? Gostava de novelas? O que pensava de garotas que pedem a sujeitos que batam nelas na hora de trepar? Achava o quê do dinheiro, essa mulher? Que número calçava? Tinha medo de baratas? Terá algum dia o pai espancado a mãe na frente dela e diante de seu protesto mandado que calasse a boca para não tomar uns sopapos também? Será que, como eu, ela achava que a felicidade é um negócio que inventaram para enganar os pobres, os feios e os esperançosos?". ♪