♪ ♪ [vinheta] ♪ [IGNACIO] A literatura é emoção e sensação. [MARÇAL] Eu digo que a minha matriz é a rua. [ADELIA] Ter um estilo é limite. [BARTOLOMEU] Eu acho que é impossível viver sem ler. [MUTARELLI] Tem muito de mim em tudo que eu falo. [MARCELINO] Dói, eu escrevo. [TEZZA] O ato de escrever vai te dizendo também, um pouco, quem você é. [MUTARELLI] "Ele entra. Ele traz uma perna, uma prótese. 'É japonesa', ele disse. Vou comprar. Vai ser a perna do meu pai. Eu já tenho olho. Agora que paguei, tenho a perna. Sei que com o tempo vou montá-lo. Vou montar o meu pai. Meu pai Frankenstein. O pai que se foi, se foi antes que eu o tivesse. Foi antes de eu nascer, nem me viu, nunca voltou. Foi. Ele só saiu com minha mãe uma vez, eu nem sei o seu nome. Nem sei se um nome ele tem. Ele nem sabe como eu sou, ele nunca me viu. Eu só o imaginei, a vida inteira. Eu mesmo lhe dei um nome, eu mesmo o batizei, eu mesmo cuidei de criá-lo, de cada detalhe eu cuidei. Meu pai, fui eu que inventei. Ele nunca soube o que eu sinto, não soube o quanto o amei. Ele não sabe que rezo todas as noites, ele não sabe. Ele não sabe como é minha cara, nem sabe como ela foi. Não sabe que eu fui criança, não sabe que a cicatriz do joelho foi da vez que eu caí. Ele não sabe que existo, e que tenho a cara do Bombril. Ele meteu rapidinho em minha mãe e se foi. Eu fiquei. Ele é mais triste que eu, talvez ele não tenha ninguém. Eu tenho ele. Meu pai Frankenstein." ♪ [música] ♪ [MUTARELLI] Não se vive disso decentemente. De arte não se vive decentemente. É um ofício, eu encaro como um ofício, eu preciso de disciplina, eu tento, eu levanto cedo todo dia e tento... quando eu estou só escrevendo eu tento todo dia, durante algum tempo, escrever, mesmo que no dia seguinte eu jogue fora. Então é algo que eu acho que esse exercício é importante, também acho importante o dia que não está indo você aceitar isso e fazer outra coisa, porque de alguma forma eu acho que as palavras também estão se processando, acho que também isso é parte do processo. Mas é um ofício, é um trabalho, é um trabalho, é a minha profissão atualmente. Eu acho que o trabalho de desenhar é muito mais ligado ao ofício, porque aí eu tenho muito mais ferramentas e tenho um tempo que eu dedico mais. [MUTARELLI] Um desenho você faz um esboço, mesmo que você não faça o esboço você sabe, eu, pelo menos, por trabalhar muito tempo com isso, eu sei onde eu vou chegar ou o quê que eu tenho que fazer. É muito menos intuitivo, né, para mim. A palavra é muito mais, é começar e tentar entrar em uma frequência e deixar isso fluindo, assim. O que te motiva, às vezes são ideias tão pequenas para mim, às vezes eu parto de coisas tão pequenas, de uma pequena fagulha. Uma coisa que eu chamava de "ir além", é pegar um pequeno, um pequeno argumento, um pequeno incidente e ir além, né. Mas eu sinto quando ela tem potencial de seguir. Mas uma ideia que eu sinta interessante, você pega ela e ela vai, essa fagulha vai incendiando, assim, isso é muito fascinante. Então acho que a maioria das minhas histórias partem de algum pequeno incidente ou de alguma pequena ideia, e aí eu sento e vou vendo que caminho eu posso seguir. Nesse ofício da palavra, o silêncio também é importante. O dia que às vezes não vai, ou o momento que você fica, essas coisas se processam e vão de alguma forma se encaixando. Eu digo que mesmo quando eu não estou fazendo nada, nem pensando no trabalho, eu sei que eu estou trabalhando, eu sei que internamente essas coisas vão de alguma forma assentando ou se colocando de um jeito que uma hora isso vem, né. Acho que é muito, é um processo muito particular, mas eu sinto muito isso comigo. [MUTARELLI] O meu trabalho é completamente, continua sendo completamente solitário. Eu trabalho em casa há muitos anos, há mais de vinte anos. Então em casa é muito difícil, se você não tem uma disciplina, você não trabalha, porque está tudo, tua cama está ali, o whisky tá lá. O videogame, tudo está lá. Então se você, a tentação para não trabalhar é muito grande. Quando eu desenho, eu ainda, eu consigo ouvir música quando eu desenho, que eu digo que a música é minha religião. Quando eu tô só escrevendo, eu antes de começar a escrever eu ouço um pouco de música para me religar, que é o sentido da religião, me ligar comigo mesmo, e aí começo a trabalhar sem música. Então se eu fizer um quadrinho hoje, vai ser uma coisa completamente experimental. E os meus textos, cada livro eu tento experimentar uma nova forma. Isso pra mim, eu não quero descobrir uma fórmula, eu não quero me acomodar, eu já me profissionalizei, e isso é muito difícil, eu não quero perder o prazer no que eu faço e é muito fácil as pessoas irem te moldando e quererem alguma coisa que você fez dar certo e quererem outra dessa, e outra e outra. E eu não quero isso. Eu quero errar, eu quero fazer livros ruins, eu quero experimentar... é isso que eu quero. Eu quero voltar ao começo, de alguma forma, né. ♪ [música] ♪ [MUTARELLI] As pessoas costumam elogiar os meus diálogos, e nos quadrinhos a coisa mais forte é o balão, que é o diálogo, né. E no balão você tem que sintetizar informações e uma conversa e... no mínimo, no menor espaço possível. Então eu acho que essa minha passagem e essa minha origem dos quadrinhos, sem dúvida ajudou muito a tornar a minha literatura mais dinâmica. O grande segredo do diálogo é isso, é você falar em voz alta. Eu comecei a gravar, usar gravador e falar, porque é só falando que você sente, assim. Uma coisa que eu fazia, na minha solidão do trabalho, às vezes era trazer um amigo, alguém que eu conheço muito, e tentar criar um diálogo com essa pessoa. Ela não estando lá. E tentando entender como essa pessoa reagiria ou como ela responderia. Era uma brincadeira, quase um exercício, e que me ajudava muito a criar diálogos. Às vezes, claro que eu uso coisas que eu ouvi um amigo dizendo, eu me aproprio, é um direito. Às vezes eu falo, às vezes eu não falo. Mas você ouve coisas que às vezes você fala: "Não, isso eu vou usar", eu não preciso dizer de onde eu tirei, mas também você cria muito falando em voz alta, né. Existem padrões de diálogos também. As pessoas usam muito frases feitas no dia a dia e nos diálogos, e isso é uma coisa que eu comecei a perceber também e comecei a incorporar isso em alguns personagens que deixam de dialogar profundamente e passam a ter um diálogo meio raso e também é um exercício que eu acho interessante. Os meus personagens, sem exceção, são personagens que estão à beira de uma mudança profunda na vida delas, geralmente elas estão sofrendo de um distúrbio que está se manifestando e a partir dali isso geralmente é irreversível e a minha história enquadra momentos antes dessa mudança até o momento qualquer, não até, nunca tenho solução. ♪ [música] ♪ [MUTARELLI] Eu cheguei no meu limite técnico. A técnica é uma coisa que acaba te aprisionando, então eu começava um desenho, eu sabia onde eu ia chegar, eu sabia que eu não ia além daquilo, eu sabia onde eu ia chegar. Isso é muito desestimulante, né? Atualmente eu tenho feito uma coisa que eu chamo de "a vida com efeito", porque eu vou desenhar sobre efeito de álcool, ou alguma coisa assim, e que eu uso material muito ruim para me tirar um pouco dessa técnica. Então eu uso pincel quase sem pelo, tinta velha e tal. E aí eu esboço, eu não faço esboço, eu desenho direto alguma coisa, escrevo alguma frase, e isso tem sido muito prazeroso pra mim, é quase um laboratório de ideias. É algo que talvez eu publique alguma coisa desse material, eu tenho muito desse material. Mas não é quadrinho, não é literatura, não é nada, mas são experimentações. Isso ainda me dá muito prazer de fazer. Quando você chega em uma editora grande e tudo, a tendência é você se acomodar e se formatar, e eu não quero isso, eu quero ter o prazer da experimentação. ♪ [música] ♪ [MUTARELLI] No quadrinho você tem que ter uma pequena noção de muitas coisas e de muitas coisas ligadas, se não ao cinema, muito ao teatro. Você tem que ter uma noção de figurino, uma noção de cenário, uma noção de iluminação, uma noção até de interpretação para você desenhar esses personagens. Então o quadrinho é algo muito complexo e muito trabalhoso para você construir. Eu acho que tem, é uma arte sequencial, então é quase um storyboard ou coisa e tal, você está destrinchando essa história, apresentando ela num tempo e num espaço. Quadrinhos sofrem um preconceito muito grande. É um público muito distinto o público de quadrinhos do público de literatura. Mesmo os meus leitores que leem os meus quadrinhos não leem os meus livros, e quem lê meus livros não lê meus quadrinhos. Quadrinho é algo que culturalmente não é muito compreendido aqui, eu acho. Quando eu comecei, eu tentei jornal, tira e coisa assim e não consegui. Eu sinto que eu fazia quadrinhos pro meu pai. Era um diálogo, era uma forma de eu me aproximar dele. Depois que ele morreu, perdeu muito sentido passar 12, 18 horas fazendo alguma coisa que me dava tanto trabalho e tão pouco retorno. E talvez em algum momento eu volte a fazer quadrinhos do jeito que eu tenho vontade de experimentar agora. ♪ [vinheta] ♪ ♪ [vinheta] ♪ ♪ [música] ♪ [MUTARELLI] Atualmente eu tenho gostado muito mais de escrever. Tenho tentado me afastar do desenho justamente pelo poder da palavra. Mas a palavra, nesse momento, é o que tem me encantado mais. Quando eu leio um texto, o que vem na minha cabeça é algo muito mais próximo da realidade do que de qualquer outra forma. Mesmo se eu vejo um filme ou se eu vejo uma peça, mas se eu leio um texto e entro nesse texto, o que evoca na minha cabeça é algo muito próximo da realidade. Então eu acho que a palavra é de alguma forma... embora ela tenha significados múltiplos para cada um, eu acho que ela é quase um pequeno reservatório do que ela tenta conter, do que ela tenta capturar ali. Mas eu acho que a palavra é o que está entre a imagem e o pensamento. É difícil, né, falar da palavra. Que, como escritor, a gente escreve essa palavra, né, mas a pessoa que está lendo, eu acho que o poder da palavra está naquele ponto, onde ela deixa de ser algo impresso e vira essa, e está virando essa imagem no imaginário de cada um. Isso me fascina muito, o fato da palavra e da língua serem vivas, né, de estar sempre se transformando, de estar sempre, cada vez mais, hoje em dia eu acho que é mais aberto ainda. As palavras, surgem palavras, ou palavras são mudadas ou adaptadas e elas acabam sendo incorporadas. E eu acho isso importante. Isso vai, talvez daqui a cem anos seja difícil entender o que a gente está falando aqui. Isso é bom também, acho que a necessidade da gente aprimorar e aperfeiçoar a comunicação, acho que é muito fruto disso, assim. Eu sempre digo que eu tinha muito respeito pela literatura. Literatura para mim era uma coisa sagrada, então eu não tinha coragem de escrever. Mas esse texto, que é o "O Cheiro do Ralo", a meu ver só podia ser, só podia funcionar, eu só podia apresentar se fosse em texto. Aí as pessoas perguntam: "Então por que você vendeu para virar filme?", eu vendi porque eu sou uma boa prostituta, eu precisava de dinheiro, e o que eu fiz foi o livro, o filme é uma outra coisa, que eu gosto muito, inclusive. ♪ [música] ♪ [MUTARELLI] A partir do momento desse livro, eu comecei a ter outras experiências, assim. Eu andava muito cansado dos quadrinhos, do meio dos quadrinhos, do que é fazer quadrinho, do trabalho que é e do pouco retorno que tem, então aí eu acabei seguindo mais por aí. Quando eu tive a ideia do "Cheiro do Ralo", eu escrevi em cinco dias. E eu levei mais dez dias depois enxugando e editando algumas coisas, mas o livro saiu em cinco dias. Claro que foram cinco dias quase que direto, eu parava para fazer um miojo. Eu levo em média de quinze dias a um mês para escrever um livro, no máximo. Eu não falo isso, eu sei que está gravando, eu falo para os meus editores que eu levo seis, sete meses, mas é para ir enrolando e conseguir algum trocado até eu sentar e fazer de verdade. ♪ [música] ♪ [MUTARELLI] "Nada me Faltará", que é uma, eu tentei fazer um livro minimalista. Não queria nenhuma poesia, não queria nada, nada mais rebuscado, eu queria tentar o mais simples e o mínimo possível. Então por isso é em conversas, em diálogos, em frases muito cotidianas, né, no que a gente diz normalmente, assim. [MUTARELLI] Eu fiz um livro ruim, e eu vou fazer um livro ruim, porque eu falei para os meus editores: "É importante você ter um livro ruim", é ignorante você querer um livro melhor que o outro. Um livro ruim é importante para vir um livro bom lá pra frente. E é importante ter um livro ruim. Eu gosto muito de música, e tem alguns autores que eu gosto que às vezes fazem uns três cds que são um lixo, mas depois vem um que é incrível. Então eu acho que o processo de chegar às vezes em uma coisa incrível é você fazer umas três ou quatro coisas ruins. Eu acho que cada pessoa tem que encontrar o livro que foi escrito para ela, de alguma forma. Eu comecei a gostar de ler quando eu encontrei o Kafka, então eu acho que cada pessoa tem que experimentar até encontrar alguém que te toque, alguém que escreveu pra você, que escreveu o teu livro. O livro que é teu, não é dos outros, né. E a partir daí eu comecei a procurar outros autores que me tocassem dessa forma, e o que é incrível é que a gente sempre encontra algum autor que a gente não conhece e que nos toca, e que dá esse prazer de ler. ♪ [música] ♪ [MUTARELLI] O que eu acho curioso é que nada que eu fiz em quadrinhos foi adaptado para o cinema, mas os livros eu já tenho três livros, dois já adaptados e um vendido. Só a palavra parece que acaba atraindo mais. Tudo que eu faço está no meu campo de visão, tanto escrever quanto desenhar está aqui, eu tô vendo. E atuar é uma coisa que eu não via o que eu estava fazendo. Isso era muito estimulante, e foi uma brincadeira. [MULHER] É realmente interessante isso. Você devia escrever sobre isso. [MUTARELLI] Que isso. Eu não sou escritor, eu sou só um caça-talentos, como se diz por aí. [MUTARELLI] Eu percebi que eu entrei nessa coisa de ator como um policial infiltrado, um autor infiltrado, para entender um pouco do outro lado. [MUTARELLI] Vaidade! Pura vaidade! Orgulho e vaidade o caminho do inferno! [MUTARELLI] Eu me expresso no meu texto, eu me expresso no meu desenho, essa coisa de atuar é uma outra coisa, pra mim é uma brincadeira, é uma experimentação, é uma vivência que me traz material, matéria-prima para o que eu faço de verdade, que é escrever e desenhar. [MUTARELLI] Entrei, pá, pá. Dei dois tecos. [POLICIAL] Em quem? [MUTARELLI] Não, para o alto. [MUTARELLI] Tem algo no meu trabalho que tem muito a ver com essa entidade, com o mal em essência. Não o mal humano, mas o mal como entidade. É algo que me fascina, é algo que eu estudei durante um tempo, e algo muito presente no meu trabalho. Não o mal humano, mas esse mal, essência. Eu acho que isso é muito presente na literatura em geral e é algo que talvez eu questione e enquanto eu não esgotar esse meu questionamento, eu acho que ele vai estar presente na minha obra. Tem muito de mim em tudo que eu faço. O meu humor é o humor negro, né. E o humor negro é uma forma também agressiva. Então eu acho que é uma resposta agressiva a tudo isso. Essa coisa da minha infância é que eu parto muito das minhas primeiras impressões. Eu tenho, agora eu estou cada vez perdendo mais a minha memória, mas eu sempre tento lembrar, tenho muito forte algumas primeiras impressões, né. Eu lembro quando eu ouvi a primeira vez uma palavra, ou quando eu associei ou pensei ter entendido pela primeira vez uma palavra, ou um sentimento, ou uma... essas coisas são muito fortes e eu recorro muito a isso para escrever. Então eu acho que eu parto muito dessas primeiras impressões, que na minha infância eram todas muito sombrias. E acho que isso acaba refletindo muito no meu trabalho. ♪ [música] ♪ [MUTARELLI] Eu sou um pouco estranho, eu não vou negar, mas eu estou muito melhor hoje, assim. Eu costumo dizer que quando eu comecei, eu era muito mais estranho. Mas o mundo era mais saudável. Acho que conforme o mundo foi adoecendo, o meu trabalho ficou, ganhou mais identidade, né? Quando eu comecei a tomar medicação, pouca gente tomava. Hoje em dia só eu não tomo, todo mundo toma. [MUTARELLI] E o que eu queria botar na minha lápide uma época era aquele slogan da Rusty, que era: "A química a serviço do povo". Mas eu mudei para uma coisa mais ameaçadora, que é: "Eu vou mas eu volto". No fundo eu sou um cara gente boa ainda. [MUTARELLI] "Chego. Ela já me espera. Diz estar ansiosa e feliz. Espera não me desapontar, não como recepcionista. Abro a porta e explico os detalhes. Coisa muito suja ou quebrada, faça uma pré-seleção. O resto, deixa que eu cuido. Nunca entre sem antes bater. Ela nem desconfia que esse cargo é provisório. Coisa para menos de um mês. Então mando ela embora, e talvez ela vá. E talvez ela vá e carregue consigo um filho. E um dia esse filho tente me reconstruir, sem saber o meu nome. Talvez ele me ame. Talvez ele nunca saiba que eu não amo ninguém. Talvez sua herança seja o cheiro do ralo, hoje é ela quem framboesa me dá. Ela diz que me ama como quem diz obrigado. Então, já em minha sala, trancado, caminho até o banheiro e descubro o ralo. Ontem até esqueci, deitado de bruços inalo, trago, para ele, o ralo sou eu. Observo atento o buraco, nesta pose relembro o Narciso que Caravaggio pintou. Só que não há o reflexo, só há o escuro que sou. E isso é tudo que me resta para amar". ♪ [música] ♪