♪ ♪ [vinheta] ♪ [HOMEM] A literatura é emoção e sensação. [MAR AL] Eu digo que a minha matriz é a rua. [MULHER] Ter um estilo é limite. [HOMEM] Eu acho que é impossível viver sem ler. [HOMEM] Tem muito de mim em tudo que eu falo. [HOMEM] Dói, eu escrevo. [TEZZA] O ato de escrever vai te dizendo também, um pouco, quem você é. [TEZZA] (...) "e ele deu outro gole da bebida, quase entrando no terreno da euforia. Ele queria criar a solenidade daquele momento, uma solenidade para uso próprio, íntimo, intransferível. Como diretor de uma peça de teatro, indicando ao ator os pontos da cena: 'Sinta-se assim, mova-se até ali, sorria! Veja como você tira o cigarro da carteira, sentado sozinho nesse banco azul enquanto aguarda a vinda do seu filho. Cruze as pernas. Pense, você não quis acompanhar o parto, agora começa a ficar moda os pais acompanharem o parto dos filhos, uma participação quase religiosa! Tudo parece que está virando religião, mas você não quis!', ele se vê dizendo. 'É que meu mundo é mental', talvez ele dissesse se fosse mais velho. Um filho é a ideia de um filho. Uma mulher é a ideia de uma mulher. Às vezes as coisas coincidem com a ideia que fazemos delas, às vezes não. Quase sempre não, mas aí o tempo já passou e então nos ocupamos de coisas novas que se encaixam em outra família de ideias. Ele não quis nem saber, nem mesmo saber se será um filho ou uma filha. A mancha pesada da icografia, aquele fantasma primitivo que se projetava em uma telinha escura, movendo-se na escuridão e no calor, não se traduziu em sexo, apenas em ser. 'Preferimos não saber', foi o que disseram ao médico. Tudo está bem, parece. É o que importa." ♪ [música] ♪ [TEZZA] O que acontece é que o ato de escrever tem algumas características, principalmente do prosador, que é uma coisa assim, mais burocrática e demorada, você escrever um romance, que eu sou basicamente um romancista, você leva um ano, dois anos, escrevendo. É um processo de convivência muito demorado, que você fica muito tempo sozinho. Você precisa ter disciplina, você precisa organizar o teu tempo, quer dizer, você pode ter poetas geniais extremamente desorganizados na vida pessoal, e isso a história está cheia de grandes exemplos de gênios, né? Mas romancistas, é muito difícil. São figuras mais conservadoras, digamos assim, entre aspas, da vida pessoal, porque o trabalho exige, tem um certo trabalho de... mais pesado. E nesse processo, você acaba sendo escrito, porque escreve. Quer dizer, o ato de escrever vai te dizendo também um pouco quem você é. Todo mundo existe na nossa cabeça pela linguagem. Quer dizer, as coisas não falam sozinhas. Nenhum objeto diz o que é, a gente que diz a ele o que ele é, pelas palavras. Quer dizer, o mundo é atravessado pelas palavras. O escritor que trabalha, que escreve, passa tempo escrevendo, você de certa forma vai dando explicações, dando finalidades, dando um perfil ao mundo que não tem perfil nenhum, quer dizer, por conta própria é o caos. Então nós escrevemos para organizar isso aí de alguma forma. E, claro, você vai se refugiando na escrita, é uma coisa saborosa, é um trabalho que você fica ansiando aquela hora de você ir lá e escrever. [TEZZA] Com 15, 16 anos comecei a escrever poesia, como todo mundo, e de repente você trabalha em teatro e tomei rumo, assim, pela coisa da literatura, e aí não voltei mais. Queria ser um escritor, um artista, alguém que vive para modificar a vida e o mundo. Quer dizer, escrever significava eu repudiar um tipo de modo de vida, a minha vida tinha que ser, era uma questão, um ato existencial, não era simplesmente adquirir uma perícia formal. Não há ninguém pedindo escritores, a gente mete a cara porque quer! É uma escolha absolutamente pessoal. E isso tem consequências, quer dizer, você tem que aguentar o rojão, porque você está propondo alguma coisa que não estão pedindo a você, é um processo pessoal. E do ponto de vista prático, é muito difícil sobreviver da escrita. Se ele não tiver um trabalho como jornalista, se não tiver, não for professor, como eu fui a vida inteira... Foi o meu ganha-pão. Felizmente eu tive um trabalho que me permitiu escrever. [TEZZA] Sabendo negociar bem o tempo, sabendo cuidar bem, assim... morando em Curitiba, que é uma cidade em que você não tem nada o que fazer mesmo. [risos]. [TEZZA] Sobra tempo para escrever. Não, não há nada o que fazer em Curitiba, você fica em casa e pede pizza pelo telefone. [risos] [TEZZA] Olha, eu acho que eu sou um escritor de natureza confessional, que significa que a minha literatura, praticamente todos os meus romances, tem um ponto de vista particular, assim, de, como constituição da linguagem, de alguém que se confessa, o que não tem nada a ver com biográfico, simplesmente é um modo de entrar no mundo literário. Toda arte, toda literatura, por mais que o autor diga o contrário, se fundamenta na própria experiência. Não há como se tirar de uma redoma de vidro isolada da realidade pessoal. ♪ [TEZZA] O primeiro livro com circulação nacional foi em 88, Trapo, pela Brasiliense. Naquele tempo, digamos que ainda era uma era pouco profissionalizada da editoração brasileira, né. E o Leminski não gostou do livro, fez um posfácio falando mal do livro. [risos] [TEZZA] É o único caso da literatura brasileira que tem um livro com um posfácio falando mal do próprio livro. E depois ele mesmo, uma vez, encontrou comigo e disse que achava que o Trapo era ele, que eu tinha escrito o livro para retratá-lo. E obviamente não, era uma geração só, e eu me incluía, eu também que era o trapo, não era questão do Leminski ou não. Então ficou essa história anedótica, assim, de um livro com um texto contra o próprio livro, expresso ali na edição. [risos] [TEZZA] Eu acho que a gente tem alguns fantasmas, assim, que perseguem ao longo da vida. Eu tenho impressão que, olhando meus livros, tem uma linha central que eu não consigo divisar bem, mas eu sei qual que é. Digamos que alguns campos de significado são muito presentes para mim. Primeiro que a minha literatura é urbana, de cidade, de classe média, classe média urbana, temas de família, relações familiares são muito fortes em alguns contos, o tema da solidão... depois, a partir de um certo momento, alguns aspectos de construção estética mesmo, a partir do breve espaço entre cor e sombra, o próprio "Fotógrafo" dessa reflexão do encontro de artes. Porque meus primeiros livros, livros juvenis, "O Terrorista Lírico", "A Cidade Inventada", não tinha problema, não tinha espaço delimitado, eram livros, assim, muito influenciados ainda por uma visão mágica, cósmica do mundo, uma pitada de Borges, aquelas leituras de adolescentes, que eu não tinha um espaço concreto. E com o "Trapo", que foi o primeiro livro que eu percebi a questão do registro urbano como a minha fonte literária, e aí tudo veio junto, como linguagem, como personagens, como ponto de vista. Curitiba me deu esse material, assim, muito rico. ♪ O "Fotógrafo" é um livro que se passa inteiro, em um único dia, é um fotógrafo contratado para fotografar secretamente uma modelo, e são vários personagens que se cruzam, ele, do ponto de vista dele, depois cada capítulo é o ponto de vista de uma pessoa envolvida. Então é um cruzamento, é um contraponto de vários pontos de vista. Tudo em um único dia. Fotógrafo seguindo a modelo. Parece que uma voz tem que iluminar outra, um ponto de vista tem que iluminar outro. Sempre tem mais de um ponto de vista estruturando o livro, com algumas poucas exceções. No "Trapo", você tem no Trapo, o professor Manuel, que são duas linguagens diferentes, o Juliano Pavollini, ele está na cadeia contando para a psicóloga, que ela fica assim, como espécie de pano de fundo, né. Tem duas vozes ali, uma implícita e a outra explícita. No "Breve Espaço Entre Cor e Sombra", "Uma Noite em Curitiba" você tem o pai e o filho, são dois textos, um comentando o outro. No próprio "Fotógrafo", tem muitos pontos de vista, embora o narrador sempre esteja na terceira pessoa, que tem uma questão de linguagem. ♪ [TEZZA] Olha, são imagens, assim. Começa com certas imagens e depois encontra uma linguagem, né. Eu lembro, assim, que o Juliano Pavollini, por exemplo, eu sempre quis escrever uma história de um menino educado em um bordel, laborando em um sótão. Convivendo com prostitutas. Eu me lembro que eu comecei, me estalou na cabeça a linguagem do Juliano, a primeira frase era assim: "Eu tinha tudo para dar certo, exceto a família", então eu disse assim: "É um belo começo de livro!", eu já tenho a cabeça do Juliano, eu tenho humor, um tipo de ironia, tenho o contexto dele, então é uma, aquilo me deu um ponto de partida, que eu estava maduro para escrever. O "Fotógrafo" eu tinha todo aquele esquema, mas eu não tinha nenhuma linguagem ainda. E me dá o mote do livro foi quando eu disse assim: "A solidão é a forma discreta do ressentimento". Eu disse: "Pronto! Meu livro está pronto!", quer dizer, como linguagem eu já tinha um ponto de partida, que é a primeira frase do livro, né. E isso aí me deu o tom, que vai da primeira à última página. "Uma Noite em Curitiba" é muito engraçado, porque o livro tem o tom irônico do [] "Escrevo esse livro por dinheiro. Ponto". [risos] [TEZZA] Eu achei ótimo aquilo! São formas que você tem de, digamos assim, saber qual é a voz do livro, quem que vai falar ali. Eu tenho, em geral, um começo, um meio e um fim na cabeça, e aquele fim nunca vai ser, na realidade, aquele que eu bolei antes. O fim é uma espécie, assim, de âncora de segurança que eu deixo comigo para jogar caso eu me perca, eu já sei para onde eu vou. Mas o ato de escrever vai criando mil situações diferentes. O "Fotógrafo", por exemplo, era um livro projetado para ser três meses na vida do fotógrafo, esses três meses se reduziram a um dia, que eu cheguei na página trinta e eu disse: "Não, esse dia vai me resolver o livro, eu não preciso estender muito". Aí eu fui, fui recolocando, outros personagens entraram, eu fui fazendo aquela rede de pequenas coincidências no dia, porque é um livro muito geográfico, as pessoas andam pelas ruas, tem encontros, e isso aí foi uma coisa que só o ato de escrever me deu. Eu previamente tinha uma outra coisa na cabeça. ♪ [TEZZA] A literatura não é uma arte ingênua. Assim como você tem, por exemplo, um pintor primitivo que pode ser excepcional e não entender nada de perspectiva, você não vai ter um bom escritor que não entenda de linguagem, quer dizer, que não tenha um bom domínio, embora não precise conhecer gramática, teoria sobre a língua, mas ele vai ter que ter um bom domínio do metiê, de língua padrão, porque literatura é uma arte sofisticada, nesse sentido de domínio de linguagem. De repente se você mergulha demais na gramática normativa, ou vira aqueles chatos, assim, de ficar vigiando a fala dos outros, você pode bloquear a tua linguagem literária, que pode perder a leveza, pode perder a graça, a oralidade, porque você fica preocupado "ah, regência aqui, tem que botar", e aí você de repente está escrevendo, você bota uma camisa de força. Eu acho que o escritor tem que ter uma boa intuição para linguagem contemporânea, principalmente no português do brasileiro, que é um português que se afasta muito, em muitos pontos, fortemente, do português lusitano, e as gramáticas não percebem isso. Elas estão atrasadas com relação à realidade do linguística nossa, em vários aspectos. Isso de linguagem de literatura, não estou nem falando de linguagem de rua, ou coloquial. ♪ [TEZZA] O romance juvenil lançado nacionalmente vai se encerrar na primeira edição, para todo o sempre, depois de uma rusga idiota com o editor de São Paulo daqui alguns meses. É preciso cortar esse parágrafo da segunda edição, porque as professorinhas do interior estão reclamando. Desistiu do livro. ♪ [vinheta] ♪ ♪ [vinheta] ♪ [TEZZA] "Tem energia de sobra para ficar dias e dias dormindo mal, bebendo cerveja nos intervalos, fumando bastante, dando risadas e contando histórias enquanto a mulher se recupera. Seria agora um pai, o que sempre dignifica a biografia. Será um pai excelente, ele tem certeza. Fará de seu filho arena de sua visão de mundo. Já tem pronta para ele uma cosmogonia inteira. Lembrou-se alguns dos versos de 'O filho da primavera', a professora amiga vai publicá-los na revista de Letras. Sim, os versos são bonitos, ele sonhou. O poeta é bom conselheiro. 'Faça isso, seja assim, respire esse ar, olhe o mundo'. As metáforas, uma a uma, evocam a bondade humana. Kipling da província, ele se sente impregnado de humanismo. 'O filho será a prova definitiva das minhas qualidades', quase chega a dizer em voz alta, no silêncio daquele corredor final, poucos minutos antes de sua nova vida". ♪ [TEZZA] Eu acho que a teoria não é importante para quem escreve. São campos distintos. O que me abriu certo, uma certa atividade, uma área de atividade, que eu gosto muito, é a própria crítica literária. Resenhas, alguns ensaios de literatura que eu faço. Esses são trabalhos esporádicos que eu faço, de teoria literária, de análise de literatura, que me ajudam, mas não é, são como dois compartimentos, né? Eu procuro não fazer, não mexer com quarto escuro da minha produção literária, que ela tem que ficar no escuro mesmo. É fácil a gente ser um crítico analista do livro dos outros. Quando eu começo a olhar pra mim... [risos] [TEZZA] Eu sou bastante impiedoso, tenho uma autocrítica muito forte. Meus livros são reescritos muitas vezes, e às vezes eu tenho que dizer para mim: "Chega! Para! Tá pronto já", senão eles ficam eternamente inacabados. Eu gosto de fazer resenha. O pessoal fala muito mal de resenha, diz que resenha é a especialidade da crítica e tal. Na verdade é uma apresentação de livro. Eu não me coloco como crítico profissional. Então eu sou um autor que comenta um livro lido, apresenta um livro para o leitor, o que eu acho um trabalho digno. E a resenha tem um negócio interessante, que é um texto muito curto, em geral três mil toques, três mil e quinhentos. Eu digo que é o soneto da crítica, né. Você tem que dar muita informação em poucas palavras para o leitor. E de fato, os espaços hoje são menores. Você tem que contar com esses poucos espaços. Não dá para imaginar que você vai ter hoje cadernos literários em jornais, como eram nos anos 50. Não tem mais isso. Os textos são mais curtos, as pessoas têm menos tempo de ler, quer dizer, é uma espécie de painel. Claro, você tem revistas especializadas, jornais especializados, que é outra história. Mas o espaço jornalístico ficou mais estreito hoje, a gente deve aproveitar esse espaço onde ele aparece. ♪ [TEZZA] Esta é uma obra de ficção, sobre um material biográfico, mas é um romance, funciona como um romance, deve ser lido como tal, tem toda ambiguidade, os duplos sentidos e abertura de caminho que a literatura deve dar. Quando eu comecei a escrever o "Filho Eterno", teve um fato da minha biografia que eu nunca tinha tocado e nunca tinha escrito sobre esse tema, que afinal foi o fato mais impactante da minha vida. Eu tive um filho com síndrome de down, e que eu passei mais de vinte anos, duas décadas, sem jamais tocar nesse assunto ou conseguir escrever. Eu só escrevi esse livro porque eu, como pai, convivo há vinte e oito anos com ele e sei, ele não é um leitor. Quer dizer, há aí um abismo intransponível entre a consciência que eu tenho da linguagem e a que ele tem, né? Com isso que eu queria lidar no livro, esse era o meu tema. No momento que eu criei o personagem, eu criei em terceira pessoa, "ele", eu me transformei em "ele", e aí eu me libertei da escravidão biográfica de um lado e da questão pessoal de outro, não sou eu que estou falando essas coisas aqui, é o narrador, e o narrador é alguém que pega uma vida inteira, vinte e oito anos da vida e coloca em duzentas páginas. A questão de que o material biográfico aí foi só o ponto de partida. O ponto de chegada é outro, é um romance. O livro é afetivo do começo ao fim, ele só não é sentimental, isso eu não podia fazer, tinha que ser um narrador cruel, porque o bom escritor tem que ser cruel. Então, claro, o fato, por exemplo, do pai desejar a morte do filho assim que nasce, aquele segundo que passa na cabeça do pai, ele se transforma em uma coisa gigantesca no livro. Ele é a metade de um capítulo que vai ter um peso e uma ressonância ao longo da coisa. Evidente, eu, pessoa física, não sou aquele monstro, né? Você seleciona um segundo da tua vida, algumas emoções que você tem, como todo mundo tem, o tempo todo, e você, a literatura põe uma luz sobre aquilo, que dá uma dimensão quase que anormal, assim. Parece que aquilo passa a ser a vida dele em um determinado momento. Porque de certa forma, eu aprendi, o livro me explicou algumas coisas que eu não sabia na minha cabeça. Esse é um processo interessante da escrita. Quer dizer, você vai sendo escrito pelo que escreve. De certa forma ele botou um foco ao fazer retrospectiva da relação do pai com o filho especial. Eu fiz uma retrospectiva da minha vida, da minha geração, da minha relação familiar com ele, como pai. E também de uma certa libertação literária, quer dizer, de quebrar alguns modelos, algumas molduras dessa coragem de eu me botar pessoalmente em um livro de uma forma tão brutal que eu nunca tinha feito antes, escrevendo um romance. E o livro me abriu caminhos literários, que eu sinto que hoje, digamos, não me sinto completo como escritor, ainda falta muita coisa, mas eu dei um passo muito forte aí, assim, no que pode ser uma boa literatura. Eu sei que eu nunca, jamais, vou escrever outro livro com a força do "Filho Eterno". Eu queimei esse cartucho. Eu não vou ter um outro tema como esse. Isso já não me incomoda. É um livro marcante, mas eu vou escrever outros livros, mas literariamente não, tenho que ficar com a cabeça muito no chão, assim, não achar que não aconteceu nada de coisa, saber que aquele trabalho que é a minha vida mesmo. Escrever é o meu reconhecimento do mundo, é a única forma que eu tenho, assim, de chegar aos outros ou a mim mesmo. ♪ [TEZZA] Mudou muito a relação do escritor com a sua produção, da minha geração, dos anos 70 e 80, para hoje. Mudou radicalmente. Qual era a, como é que funcionava a coisa no meu tempo de formação? Você tinha meia dúzia de editoras no país, praticamente não profissionalizadas, ninguém ganhava nada, era uma coisa assim, quase que sem contrato, era muito difícil publicar em uma grande editora, as coisas funcionavam por correio, você mandava um pacote no correio, levava dois meses para chegar, mais cinco meses para vir a resposta: "infelizmente não podemos publicar", tudo era muito lento. Eu acabei o livro "Trapo" em 82. Entrei em vários concursos, perdi todos. Mandei para um monte de editoras, foi recusado. Até que finalmente, em 88, a editora Brasiliense topou editar o livro. Foram seis anos rodando com o livro pronto, exatamente esse que está aí. Ele foi um sucesso em 88, né. Teve uma resposta, foi o que me lançou nacionalmente. Então era um acaso. Claro que eu sofri muito, foram seis anos! Isso jamais aconteceria de novo. Se eu tivesse hoje um livro, digamos, da maturidade técnica do "Trapo", que eu acho que foi um livro maduro meu, assim, se eu tivesse hoje pronto, assim, amanhã, em uma semana certamente eu teria uma resposta de uma editora no Brasil. É muito mais fácil. Você tem um leque muito maior, você não precisa esperar todo esse tempo, não. Eu acho que foi uma questão de geração. E depois houve um advento de um fenômeno que ninguém jamais previu, que foi a internet, que praticamente 10, 15 anos, 10 anos pra cá, né, foi 2000, ali, ela mudou o perfil de todo trânsito da informação, não só no Brasil, no mundo, né? Ela abriu um espaço na internet hoje que você tem, o que a literatura circula na internet como informação, a partir da própria referência bibliográfica. Quando eu falo [], todo mundo quer me bater, porque agora virou uma espécie de chavão, assim, que a internet é uma tragédia, ninguém mais sabe escrever, todo mundo virando analfabeto e tal. E eu acho uma bobagem isso. A internet é um novo meio, que tem uma característica essencial com relação a todas as décadas de televisão, ela depende brutalmente da palavra escrita. A televisão, o império da televisão ali dos anos 70, 80, 90, é pura oralidade, né? A palavra escrita saiu de circulação. A internet, pela popularidade, pelo poder que ela tem, ela está botando a palavra escrita no palco. As pessoas estão escrevendo mais e estão lendo mais. Aí você tem, claro, uma série de problemas, é uma informação fragmentária, assistemática, tem uma série de problemas aí. Mas, de qualquer forma, a palavra escrita voltou a ter um valor social. E a internet está no centro disso aí. Ela mudou a relação de trânsito de informação. Ela deu uma outra medida. A gente nem sabe as consequências disso a longo prazo, mas eu sou totalmente favorável. Acho altamente positivo. Altamente positivo. E aquela ideia de que os jovens estão errando tudo, é uma bobagem. Isso é um tipo de lugar comum que as pessoas não pensam. Eu participo da correção, às vezes, lá do vestibular da federal, passa pela mão vinte mil redações de estudantes. É muito raro aparecer um internetês. O estudante sabe perfeitamente separar uma linguagem de outro. O internetês é uma taquigrafia do Messenger, do Skype, quer dizer, é um recurso que eles criaram, é um gênero novo que serve para aquilo lá e para mais nada. A pessoa letrada sabe diferenciar uma coisa de outra. ♪ [TEZZA] Os escritores que hoje que estão com 50, 60 anos, os novos, ainda são chamados de novos escritores, ela é uma arte tão demorada que o sujeito conseguiu... "É o novo escritor brasileiro". Eu passei a vida ouvindo isso: "Não, o Cristovão é o novo escritor brasileiro. É o novo escritor brasileiro", porque custou para essa geração começar a consolidar o seu nome ou criar, realmente, o público leitor de fato, que fosse além simplesmente dos cadernos literários ou daquele uso, digamos, tribal, assim, específico dos especialistas. ♪ [TEZZA] Eu estaria morto e enterrado se dissessem: "OIha, você não vai escrever mais nada". Não. Aí eu... pelo menos teria que ler bastante daí, né, para compensar. [TEZZA] "Ele não é mais um poeta, perdeu para sempre o sentimento do sublime, que embora soa envelhecido, é o combustível necessário para escrever poesia. A ideia do sublime não basta, ele começa a vislumbrar. Com ela, chegando só o simulacro. É preciso ter peito para chamar a si a linguagem do mundo, sem cair no ridículo. 'Há algo incompatível entre mim e a poesia', ele se diz, defensivo. Assumir a poesia, parece, é assumir uma religião, e ele, desde sempre, é alguém completamente desprovido de sentimento religioso. Um ser que se move no deserto, ele talvez escrevesse com alguma pompa, para definir a própria solidão. A solidão como um projeto, não como uma tristeza. 'Eu ainda não consegui ficar sozinho', conclui com um fio de angústia. E agora ele olha para a porta basculante sem pensar 'nunca mais'. Súbito médico, por quem nunca sentiu simpatia, e portanto nada espera dele, abre as portas basculantes, como sempre, sem sorrir. Nenhuma novidade na ausência de sorriso, daí por quê? Pai moleque, mal ocultando a garrafinha de whisky, não se perturbou. O homem tirava as luvas verdes das mãos, como quem encerra uma tarefa desagradável. Por alguma razão foi essa a imagem absurda, certamente falsa, que lhe ficou daquele momento. 'Tudo bem?', ele pergunta por perguntar, a cabeça já está no mês seguinte, sete meses depois, um ano e três meses, cinco anos a frente, o filho crescendo a cara dele. 'É um menino', também nenhuma surpresa, eu tinha certeza de que seria mesmo o filho da primavera, ele teria dito se falasse. 'A mãe está muito bem', e desapareceu por onde veio". ♪